domingo, 1 de novembro de 2009

DÉCIMA ELEGIA

"Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.
O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.
Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.
Esmorece o esforço de conciliar a verdade com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.
Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.
Os segredos não são contados porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.
Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.
Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.
Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.
É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.
O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.
Só na velhice digo bom-dia e recebo a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.
Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.
O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.
Sustentamos o atrito com o céu,
plagiando com as pálpebras o vôo anzolado, céreo, das borboletas.
Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.
Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.
Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre faleceu duas vezes.
O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto com minha dor
e discreto com minha alegria.
Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.
Envelheci, tenho muita infância pela frente..."
(Fabrício Carpinejar)

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