terça-feira, 3 de novembro de 2009

NÃO CONSIGO DORMIR, NUNCA MAIS

"não consigo dormir, nunca mais.
Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo,
Enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
Esta hiena que me devora o sonho.
Pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim
Vejo-o afastar-se em direção aos nevoeiros das cidades.
Sei, nesse instante, que nenhum abraço
Chega para atenuar a dor da separação.
Afastados, tudo o que nos resta
É começar a imitar a vida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
Este silêncio...
Capaz de ordenar e desordenar o mundo.
O canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno,
E a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
Abri a janela.
Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso
Por um verso, ou por um insulto.
Imitávamos assim a felicidade.
O sol fulmina a memória.
Limpa-a da crueldade do passado.
A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos,
Surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente.
Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas,
Reproduz-se com dificuldade.
Mas estou cansado.
Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras
-Imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas,
De fome e de violência, de sangue, de aquedutos,
De esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
Talvez... talvez uma voz.
O desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
E embarquei num cargueiro, desertei um java,
Pensei mesmo construir uma casa.
Mas não foi possível.
Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos,
E a duna incendiada,
O deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal,
Para dar de beber ao viajante que fui.
Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.
E digo:
Que tudo se afogue na gordura das manhãs,
Que tudo silencie...
E uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei..."
(Al Berto)

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