sábado, 7 de novembro de 2009

PRECE

"Neste domingo,
em que as paredes se movem dentro da fuligem do céu,
branco e nublado, quero intentar uma prece.
E como um homem, não ateu,
mas com fé apenas naquilo que faça mover a vida,
persigno meu peito nu tendo nos olhos a brumagem molhada de junho,
e só.
Procurei-me noites a fio,
e não pude encontrar senão uma réstia iluminada, uma projeção de mim,
sombra no cerrado amarelado dos fantoches sertanejos.
A viola de coxo eu posso ouvir como uma arranhadura fina,
sinfônica, e para tudo o mais que amo, sinfonia.
E depois da procura, o que de fato me ficou
foi mesmo o gosto dessas arranhaduras, serenas quase.
O amor, vão fecundo que abre abismos dentro da gente,
minera em mim e vai cada vez mais se infiltrando,
tomando o pulmão, as veias, as idéias.
E disso resulta um apaixonado, figura semovente que se arrasta
entre as calçadas recém pintadas da linguagem
e o silêncio das tardes por sobre as antenas do bairro.
O corpo da mulher, figura deitada em minha cama,
reside em minha memória doce e tirana
como uma caixinha de música,
visitá-la em pensamentos é compreender,
com um vazio e um enchimento no peito, que boa parte do que sou,
ou poderia chegar a ser, reside naquele ser,
nu, de pernas longas, olhos fechados pelo jazz.
De tudo, sou a pintura concentrada em alguma tela,
ou difusa até numa correnteza, mas sobretudo
sou aquela pintura que se desfaz um dia atrás do outro;
sou o homem que abre a porta do quarto
e vê a figura feminina, derramada à sua espera,
e que ao se volver após ter fechado a porta,
vê que se desfez a imagem, a luz apagada,
e tem a certeza íntima
de que em algum lugar também se desfez a tela..."
(Luis Gustavo Cardoso)

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