domingo, 15 de novembro de 2009

PRIMEIRA ELEGIA

"Quem se eu gritasse, me ouviria
Pois entre as ordens dos anjos?
E dado mesmo que me tomasse um deles
De repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte.
Pois o belo não é senão o início do terrível,
Que já a custo suportamos, e o admiramos tanto
Porque ele tranqüilamente desdenha destruir-nos.
Cada anjo é terrível. E assim me contenho pois,
E reprimo o apelo de obscuro soluço.
Ah! A quem podemos recorrer então?
Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros no mundo interpretado.
Resta-nos talvez alguma árvore na encosta
Que diariamente possamos rever.
Resta-nos a rua de ontem e a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.

Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos.
Estranho, ver tudo o que se encadeava esvoaçar
Solto no espaço.
E estar morto é penoso e cheio de recuperações,
Até que lentamente se divise um pouco da eternidade.
-Mas os vivos cometem todos,
O erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos -dizem- não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos.
A correnteza eterna arrebata através de ambos os reinos,
Todas as idades...
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.

Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre,
Como o seio materno suavemente se deixa, ao crescer.
Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos,
Para quem do luto tantas vezes o abençoado progresso se origina:
-Poderíamos passar sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço,
Do qual um quase divino adolescente
Escapou de súbito e para sempre,
O vazio entrou naquela vibração
que agora nos arrebata e consola e ajuda?"
(Rainer Maria Rilker)

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