quarta-feira, 4 de novembro de 2009

TABACARIA (fragmentos)

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas...
Estou hoje perplexo
como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua,
como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho,
como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum,
talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Que sei eu do que serei,
eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa
que não pode haver tantos!
Vivi, estudei, amei, e até cri...
E hoje não há mendigo
que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos
e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses
nem estudasses nem amasses nem cresses...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado,
já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história
para provar que sou sublime..."
(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)

Nenhum comentário: