"Vou falar-te das vezes que morri,
sufocada de sombras, tão capaz me sinto de morder
as lembranças que intimidam minhas mãos.
Ele entrou, subitamente, no meu sorriso esquivo
e eu retornei, mansamente, à raiz da ternura,
em multiplicado espanto.
Por isso, quero escrever, sem confidências,
os vestígios da maresia
nos meus olhos submersos nos dele
e deixar que a fogueira que me arde no olhar
ateie um lume mais noturno.
Perdi a inocência mal o avistei.
Reconhecer-lhe-ia os passos à máxima distância,
tão nítida se tornou para mim a sua sombra.
Às vezes, de madrugada,
a minha pele tinha o cheiro dele,
como se me tivesse abraçado a noite inteira.
Apetecia-me, então, roçar-lhe os dedos no peito,
ou tomá-lo nos braços, como quem embala um filho.
Diz-me tu: como evitar esta emboscada
de me deixar dominar
pela excessiva claridade do seu rosto?
Dizem que aqueles que o seguiam
traziam sobre os olhos um novo sistema solar,
onde era possível ver no escuro
todas as margens dos rios
e ouvir no firmamento todo o silêncio do mundo.
Mas eu não sabia que, em suas mãos,
se abrigavam os barcos regressados da faina
e que os pescadores
recolhiam as redes nos seus dedos.
Eu não sabia que o bando de pássaros que o seguia
amainava os ventos e as águas noturnas,
para que o luar nos embalasse.
Eu não sabia que lhe bastava olhar as conchas
para salvar os náufragos,
ou fitar os meus olhos para que eu me perdesse..."
(Graça Pires)
domingo, 24 de janeiro de 2010
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