quinta-feira, 3 de julho de 2008

EU SEI, MAS NÃO DEVIA...

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus para não perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma
a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
afasta uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente pensa no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente dorme cedo e fica satisfeito porque tira o atrasado.
A gente se acostuma
para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
A gente se acostuma
para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar,
e se perde de si mesma..."
(Marina Colassanti)

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