domingo, 31 de janeiro de 2010

SE ME ARDEU O PEITO...

"Se me ardeu o peito,
foi o amor que avisou a sua presença
e que a partir desse momento,
meus atos estariam sem freio
e a minha vida ficaria sem roteiro.
Se me ardeu o peito
foi o aviso que as minhas correntes seriam quebradas
e que seria obrigado a ceder, ceder e ceder.
Não sendo mais dono de meu caráter nem da minha estrada.
Quando arde o meu peito,
meu coração se envaidece,
pois é possuidor de uma nova vida. A sua.
O inimigo que mora no meu peito se chama sonho.
A boca que sussurra em meus ouvidos é a morte.
A poesia é sempre escrita com o meu sangue.
É preciso sentir dor para ser um poeta?
E os meus passos seguirão tortos
e a minha mente descabida da realidade.
Sou só teu. Sou prêmio na tua mão
que abandonas quando a novidade te encontra.
Mas meu peito permanece em chamas.
E por isso que sou um covarde.
Não consigo te esquecer.
Me despeço agora, não por não mais te amar,
Mas por tanto te amar.
Quando não mais sentir saudades de você, eu volto.
Pronto pra recomeçar.
Meu coração inflamado avisa que o amor é o meu fim.
E esse fim é um novo ponto de partida..."
(Alexandre Luís Pires)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

OFEREÇO-TE:

"Ofereço-te:
esta coordenada-cordilheira
esta longa seda desprendida
o buraco, o vale, o abraço prolongado.
Cavalga amor com mãos acesas
—argonauta da bússula partida—
para que sul e norte se soltem
para que os signos azuis te devorem,
para que a minha voz cubra
o teu silêncio..."
(Lourdes Espínola)

NAS PÁGINAS DE OUTRO LIVRO...

Sinto-me muito cansado.
Olho as páginas de um livro.
Há muito que conheço
a história que nele se pode ler.
Deixo-o entreaberto sobre os joelhos
e as palavras agora afastam-se de mim;
parecem ser pequenas gotas que estremecem.
Aquilo que se encontra à minha volta
reflete-se na sua superfície.
Surpreendo as mesmas casas,
um jardim esquecido.
De novo começo a leitura.
Por vezes,
há homens e mulheres que se aproximam.
Falam agora entre si.
Mas as suas vozes
perdem-se como se fosse o vento
que as levasse para outros sítios.
Principia a ouvir-se lá fora a chuva.
Mais apressadas, chegam outras pessoas.
Elas fazem parte do enredo.
Passo para outra página.
Vejo sozinha uma rapariga.
Poderia dizer-lhe:
"É muito o que te posso dar.
Mas o que existe em mim será suficiente?"
Ela faz-me um aceno.
Sabe que me encontro longe,
sozinho como ela,
nas páginas de outro livro..."
(Fernando Guimarães)

A CERTEZA QUE EXISTES...

"Vou passar a noite com estes dias.
Com o sorriso que deixaste nos lençóis.
Ainda ardo com os restos do teu nome
e vejo com os teus olhos as coisas que tocaste.
Estou entre o pão e a mesa,
no copo que levas à boca. Na boca que me guarda.
E não sei o que sou entre ontem e o que vier.
Ontem era o rio ao entardecer,
o olhar que acaricia a luz.
O meu filho escreve nos seixos da praia
e eu invento passos para os decifrar.
Todos rolam para longe. É assim o mar.
Vou aprendendo com as ondas a desfazer-me em espuma.
Há sempre uma gaivota que grita quando estou perto,
sempre uma asa entre o céu e o chão da casa.
Mas nada me pertence,
nem as palavras com que cimento as horas.
Talvez o amor seja uma pequena diferença
entre fusos horários ou o acordo ortográfico
que só existe no fundo da pele.
Mas aqui onde não sou, o que me funda
é a certeza que existes..."
(Rosa Alice Branco)

SEREI LUZ NOS TEUS BRAÇOS

"Serei luz nos teus braços
serei cálice,
maciez na curva dos teus lábios.
Serei mansidão na mesma hora
em que me torne fogo
e não consiga rasgar a minha paixão
e ir-me embora...
Serei a tua invenção e corpo intenso
louca sofreguidão no meu desvairo.
Serei o teu grito no delírio
e também devassidão se necessário..."
(Maria Teresa Horta)

E BASTA!

"Hoje aviso-te
que ficarei para sempre
arquejando no teu corpo,
na orla infinita da tua mão,
no teu ombro, que é uma espada.
Na tua língua, que é a minha.
Só o teu coração saberá
se é promessa ou ameaça,
mas ficarei para sempre
e basta!"
(Lourdes Espínola)

MERGULHADOS NUM LAGO

"Nada me disseram sobre a adrenalina
a escalar-me o peito quando te visse,
a tornar-me a garganta, deserto.
o teu cansaço nunca foi previsto
enquanto sonhávamos os mais altos sonhos.
não foi previsto o teu silêncio
na felicidade a me abraçar
todas as manhãs.
calo a minha voz nesta noite infindável.
só os meus olhos falam de ti
mergulhados num lago..."
(silvia chueire)

NO COLO DO SANGUE DO MEU PEITO

"Nas tuas mãos começava o mundo
E nada, nem o dia
Podia ser mais perfeito.
Tu eras o bicho cinzento
Do entrelaçado dos limos
O da multidão o que deslizava na água
Como a sombra.
Agora alguns anos depois
Um anjo caído encontra ninho
No colo em sangue do meu peito..."
(Ana Paula Tavares)

A TUA CARÍCIA...

"A tua carícia é um laço,
seda colada à minha pele,
veludo que se estende
e se agarra às minhas pernas.
A tua carícia é um látego feroz
que me submete ao jugo do teu tempo
e do teu prazer.
A tua carícia solta
o mar enlouquecido
dos meus gemidos..."
(Lourdes Espínola)

CHORAR A MINHA SOLIDÃO...

Beija-me
Sobre a areia fria, úmida do mar,
No sal da espuma alada
Que afaga de onda em onda os nossos pés,
No cintilar das estrelas álgidas,
solitárias na noite,
Sobre os ossos lisos de corpos
esfacelados e sangrentos.
Ajuda-me a lutar,
Envolve-me em teus braços
E deixa-me chorar a minha solidão
E a tua..."
(Teresa Balté)

EU ENTENDO...

"Escondo a raiva das lágrimas
do nada que te dei
Ferida dilacerada,
sangue exposto nos caminhos que plantámos
nos desertos da nossa esperança...
Poderíamos amar loucamente a sombra do gesto
a canção nua, o vinho a semente a baga
construir cometas à volta do desejo.
Se não fosse a alma a remissão e o pecado.
Poderíamos benzer as casas com hortelã
onde acendo o coração aberto.
Mas há a excomunhão das trepadeiras
e eu entendo..."
(Gonçalo Nuno dos Santos)

NÃO TE IMPORTES AMOR...

"Não te importes amor
se tivermos a alma em desalinho.
Amanhã cortaremos as sombras do quintal
sem acreditar que as sombras devam ser sombrias.
Mas é reconfortante acreditar na língua,
e na sabedoria popular
e em tudo o que nos torna cúmplices.
Não te importes se for outono.
Nunca pensaremos que as coisas declinam
porque nos amamos,
conjugaremos todas as estações com este amor,
pagaremos os impostos
-agora é mais fácil com o multibanco-,
escreverás cartas
e algumas deixarás de escrever
porque as penas do edredão são leves
e não é saudável resistir ao amor.
Não te importes se estivermos ocupados
com pequenas coisas.
És tão belo
a limpar a louça como a dizer um poema,
a arrumar os papéis
ou a desabotoar-me o vestido.
Pão nosso nos dai hoje
a torradeira amanhã bem cedo,
o forno quente, a manteiga a escorrer,
a tua mão a segurar a chávena
e todas as coisas que nos fazem sorrir
só porque nos amamos
e o sabemos por hoje
e pelo tempo que virá,
porque resistimos à burocracia
e ao cansaço,
porque aprendemos a olhar o rio
a ver como é diferente quando o dia nasce,
quando a noite cai,
quando uma chuva miúda torna a terra fértil
e cheira a estrume,
a merda de alcatrão lavado.
Não te importes amor se hoje te amo tanto.
Amanhã tens mais uma sílaba
e é com ela que te conjugo
entre os lençóis..."
(Rosa Alice Branco)

EU OUSO A PAIXÃO

"Eu ouso a paixão,
não a recuso
Escuto os sentidos
sem o medo por perto
troco a ternura da rosa
ponho a onda no deserto.
A tudo o que é impossível
abro e rasgo o coração.
Debaixo coloco a mão
para colher o incerto.
Desembuço o amor
no calor da emboscada
infrinjo regras e impeço.
Troco o sonho dos deuses
por um pequeno nada...
Desobedeço ao preceito
e desarrumo a paixão.
Teço e bordo o meu avesso
e desacerto a razão..."
(Maria Teresa Horta)

O QUE FAZ DOER A SOLIDÃO

"O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta.
O que faz doer a solidão
é sua sede, é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de pedridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina...
O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma.
O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher.
O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio..."
(Batista de Lima)

MAGOA-ME A SAUDADE...

"Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.
Seja eu de novo a tua sombra,
teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu, que longe de ti sou fraco
eu, que já fui água,
seiva vegetal
sou agora gota trémula,
raiz exposta.
Traz de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono..."
(Mia Couto)

ESTADO DA PAIXÃO

"O que eu preciso agora é voltar ao estado da paixão.
É reinventar uma maneira de seguir em frente desafiado,
sem temor, apenas com a vontade de chegar ao outro lado.
Tenho necessidade de tirar os pés do chão vez em quando.
Olhar de frente para o que não conheço e cumprimentar
–muito prazer!
Mas esqueço dos tropeços e saio correndo
a cada passo largo do coelho.
Noites de beijos, de sombras,
de bilhetes amassados com nomes e telefones
de quem sequer lembro a expressão dos olhos.
Eu até quero a vertigem.
Mas ainda sonho com uma vida mais calma,
sem tantas máscaras diárias e sofrimentos desnecessários.
Não suporto mais acordar com raiva de mim.
Hoje resolvi lavar roupa.
Toda a roupa suja que havia acumulado nos últimos dias.
Moro num quarto tão pequeno
que ele parece desarrumado o tempo todo.
Já não gosto mais de ficar esperando o próximo trem.
Preciso voltar a ter foco.
A acreditar em mim, sem necessariamente ancorar
meus navios em portos alheios.
Estou farto das muitas palavras e da pouca ação!"
(Autor Desconhecido)

EU AMO QUEM ME ODEIA...

"Eu te amo.
E não seria metade do que sou sem você, juro.
É seu ódio profundo que me dá forças
para continuar em frente, exatamente da minha maneira.
Prometa que nunca vai deixar de me odiar
ou não sei se a vida continuaria tendo sentido para mim.
Eu vagaria pelas ruas insegura,
sem saber o que fiz de tão errado
se alguém como você não me odeia,
é porque, no mínimo, não estou me expressando direito.
Sei que você vive falando de mim por aí
sempre que tem oportunidade,
e esse tipo de propaganda boca a boca não tem preço.
Ainda mais quando é enfática como a sua
-todos ficam interessados em conhecer uma pessoa que é assim,
tão o oposto de você.
E convenhamos:
não existe elogio maior do que ser odiado pelos odientos,
pelos mais odiosos motivos.
Então, ser execrada por você
funciona como um desses exames médicos mais graves,
em que “negativo” significa o melhor resultado possível.
Olha, a minha gratidão não tem limites,
pois sei que você poderia muito bem
estar fazendo outras coisas em vez de me odiar
-cuidando da sua própria vida,
dedicando-se mais ao seu trabalho, estudando um pouco.
Mas não: você prefere gastar seu precioso tempo me detestando.
Não sei nem se sou merecedora de tamanha consideração.
Bom, como você deve ter percebido, esta é uma carta de amor.
E, já que toda boa carta de amor termina cheia de promessas,
eis as minhas:
Prometo nunca te decepcionar fazendo algo de que você goste.
Ao contrário, estou caprichando para realizar coisas
que deverão te deixar ainda mais nervosa comigo.
Prometo não mudar,
principalmente nos detalhes que você mais detesta.
Sem esquecer
de sempre tentar descobrir novos jeitos de te deixar irritada.
Prometo jamais te responder à altura quando você for,
eventualmente, grosseira comigo, ao verbalizar tão imenso ódio.
Pois sei que isso te faria ficar feliz com uma atitude minha,
sendo uma ameaça para o sentimento tão puro que você me dedica.
Prometo, por último, que, se algum dia,
numa dessas voltas que a vida dá,
você deixar de me odiar sem motivo,
mesmo assim continuarei te amando.
Porque eu não sou daquelas que esquece
de quem contribuiu para seu sucesso.
Pena que você não esteja me vendo neste momento,
inclusive, pois veria o meu sincero sorrisinho agradecido
-e me odiaria ainda mais..."
(Carla Cristina)

AQUELE SORRISO...

"Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar,
morrer naquele sorriso."
(Eugênio Andrade)

É SÓ ME PEDIR...

"Eu entro nesse barco, é só me pedir.
Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou...
Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes.
Mudo o visual, deixo o cabelo crescer,
começo a comer direito, vou todo dia pra academia
Mas você tem que remar também.
Eu desisto fácil, você sabe.
E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos,
mas eu entro nesse barco, é só me pedir.
Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo
pra te ver todo dia.
Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo.
Mesmo se esse barco estiver furado eu vou,
basta me pedir.
Mas a gente tem que afundar junto
e descobrir que é possível nadar junto.
Eu te ensino a nadar, juro!
Mas você tem que me prometer que vai tentar,
que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso,
enquanto tiver forças!
Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa,
que vale a pena.
Que por você vale a pena.
Que por nós vale a pena.
Remar.Re-amar.
Amar..."
(Caio Fernado Abreu)

UMA ORAÇÃO

"Recuse-se a cair.
Se não puder se recusar a cair,
recuse-se a ficar no chão.
Se não puder se recusar a ficar no chão,
eleve o coração aos céus
e, como um mendigo faminto,
peça que o encham,
e ele será cheio.
Podem empurrá-lo para baixo.
Podem impedi-lo de se levantar.
Mas ninguém pode impedi-lo
de elevar seu coração aos céus
-só você.
É no meio da aflição
que tantas coisas ficam claras.
Quem diz que nada de bom
resultou disso
ainda não está escutando."
(Clarissa Pinkola Estés)

DA DESIMPORTÂNCIA

"O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma..."
(Cecília Meireles)

QUANDO TUDO ENTRE NÓS TERMINOU

"Quando tudo entre nós terminou
eu achei que seria mais fácil.
Voltar a sorrir
sem medo de contrariar sua melancolia.
Voltar a praticar certa leveza
que nosso relacionamento havia roubado de mim
em troca de tantos momentos ternos,
mas tensos em certa medida.
Quando tudo entre nós terminou,
tive medo de amar de novo, por medo de sofrer.
Foi aí que vi
o quanto de insegurança rondava meu coração,
quando perambulava entre duas cidades,
duas vidas, destinos tão pouco amparados.
Desde então vivo fugindo das declarações fofas
de amor-eterno e das afinidades eletivas.
Passei a dar preferência aos prazeres fugazes,
ao riso farto provocado pelo vinho.
Mesmo sem lembrar direito do rosto
que me beijou na noite anterior.
É que me sinto protegido, sabe?
Sinto que não vou precisar chorar ao ler ou ouvir:
- quando tudo entre nós terminou-.
Pra você deve ter sido bem mais fácil.
Eu continuo sendo assombrado
pelos fantasmas de nós dois
que a luz de uma história incompleta
imprimiu em nós..."
(Autor Desconhecido)

FALSOS PUDORES

"Não me perturbe com falsos pudores.
Prefiro o galanteio barato
que vem junto com o ar blasé
de quem se habitua a um vício.
Não me culpo mais pelas incertezas.
Hoje acordei cedo e fiz um chá.
Depois inventei um conto sem palavras,
todo bordado na minha imaginação.
Apaga o cigarro?
Tô ficando chato com a maturidade.
Confundo nomes, esqueço chaves.
Me engano fácil com algumas delicadezas.
Só algumas.
Essa noite sonhei que tudo estava diferente.
Que a janela havia sido consertada,
que as paredes do estúdio estavam pintadas de branco
como num toque de mágica...
Mas acordei com um frio de sete graus
e a tampa da privada levantada.
Você sabe me irritar.
Assim como sabe fazer aquela omelete única
com queijo barato derretido
e um quê de cebolinha picada bem fininha...
Quero voltar a dormir a noite inteira,
sem precisar dos comprimidos
que me oprimem o corpo todo no dia seguinte.
Queria esquecer que existe
uma garrafa de gim atrás da estante,
onde escondo tantos outros pequenos segredos:
uma xícara antiga com a asa quebrada,
nosso retrato rasgado num momento de fúria
e até algumas lágrimas que saíam dos olhos
direto para as páginas de certos livros.
Não quero mais lembrar de você.
Não quero nunca mais saber de nós dois..."
(Autor Desconhecido)

O AMOR NÃO ACABOU EM MIM...

"Para um coração que ficou frio: cuidados.
Isso mesmo, carinhos quentes, chá de camomila.
O desvelo de uma manta
-cobrindo mãos e braços nevados-,
a intenção do bem guiando o olhar.
A lenha crepitando na cabeça,
trazendo os cheiros fortes de uma história
que acabou: lavanda, angélica, gerânio.
E assim vou vivendo, entre belezas reveladas
pelas páginas de tantos livros,
imagens de tantos filmes.
Sons inusitados que sugerem outros temas
nas músicas que fazem viajar, aqui mesmo,
sentado na poltrona verde de tantos carinhos.
E a velha colcha de retalhos,
precisa em seus caminhos,
é a prova viva
de que o amor não acabou em mim..."
(Autor Desconhecido)

LEOPARDO

"Tu que me moras
que habitas comigo a mesma casa
e na ponta dos pés às seis horas
vais embora de sob a minha asa
Tu que me moras
que cuidas da minha dor de cabeça
e que vais retirando as escoras
que sustentam os medos que eu teça.

Tu que me mimas
que me beijas os sinais dos rastros
que enlouqueces preso às minhas crinas
quando estamos voando nos astros.
Tu que me moras
que me curas da febre em que ardo
dentro de ti caminha um leopardo
que luta com a solidão."
(Vital Lima)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

TU ESTÁS AQUI...

"Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e ouço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço
e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto
como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos
quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social
só sou um nome e sabem o que sei, o que faço
ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável seleciono cuidadosamente os gestos
e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso
talvez porque aqui sentado dentro de casa
sou outra coisa...
Esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa
e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço
que afeta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala
a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar
aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões
segundo o que tenho a fazer.
Estás aqui comigo
e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala.
Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser
e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada
onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me
absolutamente indefeso diante dos dias.
Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome
depois talvez encoberto noutro nome
embora no mesmo nome este nome
de terra, de dor, de paredes, este nome doméstico.
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz
fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda
porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa
serve para distinguir uma coisa das outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto
como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos
tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo
o que significam certas palavras
como a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa
que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas
tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares
procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira
a poder dizer sou isto é certo
mas sei que tu estás aqui..."
(Ruy Belo)

O TEMPO QUE NOS CABE

"É dentro da cabeça,
lá dentro,
que o tempo nos consome
e nos faz falta.
Não há chuva morna
nem sol que nos aqueça,
quando nos falta o sopro,
a luz, a cega fé
que nos mantém despertos,
quando por fora,
o corpo já anuncia
a noite mais profunda.
Por isso,
é dentro da cabeça,
cá dentro,
para lá dos céus,
antes que o mar termine,
nesta imensa confusão de meridianos
que nos dói e nos deslumbra,
que se aloja o segredo
indecifrável:
a cor, o som, a luz
que nos conforta,
neste intensamente breve instante
que é o tempo que nos cabe."
(António Mega Ferreira)

PERDENDO COISAS

"Estamos sempre a perder coisas,
as mais frágeis, ou as que caem pelo caminho
quando abrimos os braços para receber.
A nossa vida nunca tem as mesmas palavras
para o que transportamos,
mas tudo o que achamos nos deslumbra
a casa, cheia de coisas que temos
ou não temos cada dia..."
(Rosa Alice Branco)

VOU COM OS MORTOS...

"Ignoro se tu és capaz de voltar.
Quero a novidade de tua ausência
Com uma paixão sem calor que mais aumenta
Quando se tenta vencer a realidade.
Sou a paz em que acredito inutilmente
E ainda sou a vertigem desta paz.
O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem,
Que tua forma irresponsável de mover-se,
E se despir e descansar na minha memória.
Tu permaneces aqui sem teu corpo
E, pensando no oculto, eu abandono a existência
Para me deitar no lago das carpas.
Teria sido o final de um verão
E não o tempo em que te foste
Se em vez de amando eu estivesse louco.
Tu vives no propósito de minhas ficções
-Uma terra deserta, estável e mansa.
Nesta hora em que desapareces do meu sonho
Também eu, predador de tua alma,
vou com os mortos..."
(Mariana Ianelli)

TODOS OS TEUS PODERES

"Exerce sobre mim todos os teus poderes,
os mais avassaladores e brutais,
os que deixam na carne a marca sem resgate
de uma morte prometida em cada gesto
e dá-me a perceber que sempre que te toco
é, afinal, o fogo que estou a tocar,
como se quisesse bordar um monograma de lava
no lenço que cala o queixume dos lábios.
Deixa-me dos teus poderes
somente um rumor ou um aroma,
a inexprimível tentação que os faz
serem tão perenes e secretos,
tão sôfregos de entrega e infinito,
e depois derrota-me na arena dos teus braços
como tenazes de vento sufocando nesta boca
o sopro que aprisiona o ar dentro do grito..."
(José Jorge Letria)

PARA QUE A PAIXÃO NÃO SUBA...

"Cerras a garganta para que a paixão não suba
à língua amarga ausente a outra boca
disciplinas o peito para que o amor não flua
em flores e em orvalhos e não se reproduza.
Cristalizas a fome envelheces à míngua
a vida não regressa o juro é ouro é ferida
o acúleo na rosa o golpe de alegria
a vida é aventura não aprendeste ainda?"
(Teresa Balté)

CORAÇÃO APRISIONADO

"Embriaguei-me num doido desejo
E adoeci de saudade.
Caí no vago ... no indeciso
Não me encontro, não me vejo
-Perscruto a imensidade.
E fico a tactear na escuridão
Ninguém. Ninguém
Nem eu, tão pouco!
Encontro apenas
o tumultuar dum coração
aprisionado dentro do meu peito
aos saltos como um louco."
(Judith Teixeira)

QUALQUER COISA QUE PAREÇA ETERNO...

"Cada instante é um lugar perdido
em que te entregas à passagem do tempo.
A juventude é um vício
que perdemos inevitavelmente.
Dizes: é breve o amor,
efémera a vida.
Somos uma estância museológica,
algo anacrónico que aprende
a perdurar por medo de morrer.
Toca-me, conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo,
soletra-o na segunda pessoa do singular
ao meu ouvido,
dá-me qualquer coisa que me pareça eterno.
Basta-me que o teu olhar me encontre."
(José Rui Teixeira)

É MUITO TARDE...

"É tarde, meu amor, é muito tarde.
O tempo implacável me consome
E destrói o vigor do corpo moço:
Apagou o fulgor do meu olhar
Roubou a altivez do seio cheio
Secou o rio manso do meu ventre
Cobriu de pergaminho a minha mão
É tarde, muito tarde
Mas… por dentro
Ainda bate, por ti, o coração."
(Maria Aurora Carvalho Homem)

PELES VIRTUAIS

"Gosto de ti como se gosta do sol,
e era bom ficar ao sol todo o dia, mas queima.
Muitos outros se deitam ao sol,
toda a espécie de corpos,
não tens tamanho para tanta gente.
Um dia vai-se abrir a porta doirada,
vamos caber, um a um.
Vais-me escolher especialmente, como todos os outros.
Podes ter mãos. Podias até, alguma vez, ter lábios,
dizer alguma coisa em língua, numa língua qualquer.
Naturalmente, a imaginação poética é só devaneio,
tilintar de talheres sem nada para comer,
um ar tão leve, para que serve respirar?
Para esquecer, escrevo um longo romance verdadeiro
e pícaro; tudo nele é real!, as pessoas dormem
e acordam e dormem, e fodem nos intervalos;
devoram-se animais; mas o melhor são os diálogos.
Entre existires e não existires antes não existires,
é mais inteiro, deixa menos dúvidas dentro do crânio,
ao lado dos ossos normais. Entre mulher e homem
o melhor é não teres mesmo por onde escolher,
vestir saia-casaco ou fato completo,
usar até, em dias de festa, as tuas peles virtuais."
(António Franco Alexandre)

EU TE AMO, HOMEM...

"Eu te amo, homem,
hoje como toda a vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha,
o papel de seda e os riscos de bordado,
onde tem o desenho cômico de um peixe
-os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas,
industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela,
desejando as finuras, violoncelo, violino,
menestrel e fazendo o que sei,
o ouvido no teu peito para escutar o que bate.
Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas das tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos,
os fios da tua barba. Esmero.
Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade,
me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma,
onde apascentas o teu gado,
onde repousas ao meio-dia,
para que eu não ande vagueando
atrás dos rebanhos dos teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem.
O que a memória ama fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor.
Você me espicaça como o desenho do peixe
da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo
o que acontece quando escuto oboé.
Meu coração vai desdobrando os panos,
se alargando aquecido, dando a volta ao mundo,
estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata,
quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural,
vero-romântico, homem meu,
particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso
e a planta deles eu beijo..."
(Adélia Prado)

CANÇÃO DE DOR...

"Meu amor, como eu sofro este tormento
da tua ausência!... Ando magoada
como a folha arrancada pelo vento
ao carinhoso anseio da ramada...

Procuro desviar o pensamento...
mas oiço ao longe a tua voz molhada
em lágrimas, vibrando o sofrimento
da nossa vida assim, tão separada!

Os meus beijos escutam os teus beijos
exigentes — perdidos de saudade...
crispando amargamente os meus desejos!

E dia a dia essa canção de dor,
ritornelo sombrio de ansiedade,
exalta ainda mais o meu amor!"
(Judith Teixeira)

NOTURNAMENTE...

"Noturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo.
Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio, me anuncio
e me denuncio...
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces..."
(Mia Couto)

DEPOIS O SILÊNCIO...

"Coloquemos um lenço sobre o rosto.
Não para o ocultar mas para que fique
mais nítido o que vemos.
Essa há-de ser a margem das nossas feições,
a sua mais próxima brancura.
A respiração nem o toca sequer.
Outra brisa começava a atravessar o peito.
Ela vem agora ao nosso encontro sem qualquer ruido,
como se as mesmas folhas estivessem ausentes.
Sabemos há muito que é assim.
Depois o silêncio
chega, porque foi sempre a ele
que estas vozes pertenceram..."
(Fernando Guimarães)

ANÚNCIO OBCENO

"Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro da água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos."
(António Franco Alexandre)

TÃO LONGE DE TI

"Estive tão longe de ti
que não pensei sequer lembrar o teu nome
percorri distâncias escuras, estradas imóveis
onde circulava o peso sem cor do esquecimento
e se curvavam as pedras à boca do destino.
A solidão assustava-me, queimava-me a pele
quero dizer-te que não mais vi ternura
que os meus pés ganharam idade a um ritmo
que não pude conter, acompanhar, escrever-te.
Sim, fiz-me não te escrever
para que o teu corpo não ouvisse o vento
e as ondas fossem quebrar ao centro dos oceanos
para que uma palavra não pousasse no teu rosto
e levasse a luz dos teus olhos e a vida nos teus lábios.
Arranquei de mim a morada que eras tu
desisti dos pássaros, afundei barcos, lâminas.
apaguei o calor dos porões como se uma vela
pudesse perigosamente insistir na permanência
desse mundo que era a minha voz, éramos nós.
Estive tão longe de ti
mas deixa que agora te nomeie entre as nuvens
e traga para dentro de mim
o aroma que era o teu corpo nas manhãs a dois
deixa que venha morrer junto de ti
no ventre do amor que prometemos ao infinito..."
(Vasco Gato)

PORQUE TE AMO...

"Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo."

(Joaquim Pessoa)

AMOR PARA TODA VIDA...

"Podes dizer que me não amas,
sim, podes dizê-lo,
e o mundo acreditar,
porque só eu saberei que mentes!
Eu estou na tua alma como a flama
que devora sob a cinza
as brasas dormentes...
Não creias no remorso
- o remorso não existe!
O que tu sentes
e o que em ti subsiste,
são o rubor da minha ternura
e a chama do meu amor que em ti
nunca foram ausentes!...
Não julgues, não, que me esqueceste,
porque mentes a ti mesmo se o disseres…
Podes ter os amores que quiseres,
que o teu amor por mim,
como uma dor latente e compungida,
há-de acompanhar sempre
a tua e a minha vida!"
(Judith Teixeira)

AMOR E CAMA

"Arranham-te as carnes, minhas garras de fêmea no cio.
como uma gata vadia, me enrolo em teus braços
endeusando teu corpo -objeto do meu desejo-,
como se nosso gozo nos perpetuasse amantes,
como se a satisfação pudesse fazer brotar amor
desse teu coração petrificado e frio...
Tento rasgar-te a pele, chegar ao teu âmago,
fazer sangrar teu peito, de emoção e prazer,
como se houvesse uma entrada para mim;
como se meu corpo fizesse amor com tua alma,
e tua alma fizesse moradia em meu corpo...
Lânguidos de prazer, depois do ato,
busco um brilho em teu olhar opaco,
sondando o que está parado no ar:
estáticos carinhos, mecânicos,
isentos do sentimento que pretendo,
em ti, despertar...
Somos muitos quando nos separamos,
somos dois quando nos encontramos,
mas como separar amor e cama
se formamos um quando nos deitamos
e se ainda te desejo quando não estás?"
(Thaty Marcondes)

DEUS ME DEU UM AMOR...

"Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo rriais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visáo extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde."

(Carlos Drummond de Andrade)

FINJO...

"Finjo -não te vejo
pareço insensível frente ao teu corpo
à tua voz ao teu olhar ao teu ver
Mal finjo -não te vejo
só eu sei o sacrifício feito
dia após dia
sob uma sombra que me esmaga..."
(Carlos Ferreira)

PARA TI...

"Foi para ti que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada e para ti foi tudo.
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que falhei
o sabor do sempre...
Para ti dei voz às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo e pensei
que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente
porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida..."
(Mia Couto)

TUA VISITA E TUA AUSÊNCIA...

"Uma visita sua
é um copo de água fresca,
é a água e o copo
e a mão que segura o copo.
Em dias que eu não tiver mais copo
faz as mãos em concha
que te darei água fresca.
Em dias que eu não tiver mais água
faz as mãos em flor
eu saberei conjurar a água.
Uma visita sua
é em si um copo de água fresca.

A tua ausência
é um leito seco de riacho.
Barro duro e rachado,
ossos encrustados no chão.
É as margens ásperas dos meus lábios,
os sulcos vazios, palavras num vão.
Eu rôo a tua ausência
até sobrar só um pitoco.
Eu descasco a tua ausência
Até restar só o caroço.
Faz falta a sua visita
como um rio de água fresca..."
(Lavinia Saad)

SOU COMPOSTA...

"Sou composta por cubos e por esferas
donde brotam meigos decaedros.
Sou composta por trapos,
manchas de tinta sem plano
e dedos rupestres a castanho,
o ocre na vizinhança do rosado,
o pó de lápis-lazúli
na clara de ovo, o vermelhão nos seios,
sou composta de diálogos.
Frouxos, de troncos de árvores em pleno verão,
das ternuras de um gato preto e branco,
de insetos de níquel a voar brilhando...
Sou composta de pêlos que caem no outono
e águas duras.
Sou composta por mãos que doem nos braços
e por regaços com olhos sempre à superfície,
sou composta de estrelas na tapeçaria do palácio,
de gritos na rua –quem me chama?–,
de nuvens de hélio e náiades em gaiolas,
facilitam a visão, as trocas,
o comércio com os homens...
Sou composta pela morte que de vez em quando acorda,
por isso desconfio, sou composta pelo desejo
que grita de tal modo que não se ouve ao perto,
sou composta pela água que oscila com as marés,
pelo vapor da submissão, pelo destino obstinado.
Ou eu não fosse uma mulher..."
(Isabel Cristina Pires)

domingo, 24 de janeiro de 2010

NÃO TENHO IDEAIS...

"Sou vil, sou reles, como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são…
Modificar-me? Para meu igual?...
-Acaba lá com isso, ó coração!"

(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)

CÂNTICO NEGRO

"-Vem por aqui!
Dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: -vem por aqui!
Eu olho-os com olhos lassos,
-Há, nos meus olhos, ironias e cansaços-
E cruzo os braços, e nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: -vem por aqui!?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: -vem por aqui!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí."
(José Régio)

CANSEI...

"Cansei.
Cansei dos amores imprevisíveis,
das paixões inatingíveis
e destes sonhos momentâneos.
Cansei dos versos tropeçados,
das trovas mal-cuidadas
e do nosso desencontro.
Estou farto de horário desmarcado,
calendário descuidado
e desta agenda pouco atenta.
Não quero mais que caminhemos
em direções contrárias,
todas aquelas insistências de namorada
e este mal-tempo no meu realento.
Cansei do sorriso que não foi trocado,
de todo beijo que não foi roubado
e essa poesia mal-levada.
Não acredito mais em distância
e toda essa cobrança
que não é digna de nós dois.
Cansei do que foi de menos
e não quero que sejamos tão jamais.
Agora eu quero ela.
Agora eu quero mais..."
(Bernardo Biagioni)

TENHO TE AMADO TANTO...

"Tenho te amado tanto e de tal jeito
Como se a terra fosse um céu em brasa.
Abrasa assim de amor todo meu peito
Como se a vida fosse vôo e asa

Iniciação e fim. Amo-te ausente
Porque é de ausência o amor que se pressente.
E se é que este arder há de ser sempre
Hei de morrer de amor nascendo em mim.

Que mistério tão grande se aproxima
Deste poeta irreal e sem magia?
De onde vem este sopro que me anima
A olhar as coisas com o olhar que as cria?

Atormenta-me a vida de poesia
De amor e medo e de infinita espera.
E se é que te amo mais do que devia
Não sei o que se deva amar na terra."

(Hilda Hilst)

ATÉ QUE A DOR ALEGRE RECOMECE...

"Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objetos em sua função,
Sejam eles a boca, os olhos, ou os lábios.
Treinar-se a respirar florescentemente.
Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio.
Conceder ás cortinas o dom de sombrear.
Pegar então num objeto contundente e amaciá-lo com a cor.
Rasgar num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes.
Ficar na dureza firme. Conter.
Arrancar ao meu sexo de ler a palavra que te quer.
Soprá-la para dentro de ti
até que a dor alegre recomece..."
(Maria Gabriela Llansol)

HOJE PROCUREI-TE...

"Hoje procurei-te e não estavas amor
eras o vulto cansado de ternura
a fúria calada da magia
das cores hibernando...
Hoje chamei-te e não havias amor
eras o tronco vergado sob a pedra
teus pés arrostavam o jugo
dos longos corredores...
Hoje não chegaste rubro e luminoso
jazias no retrato que habitava
o meu ouvido há quanto tempo
doera-te o silêncio...
Ascendêramos a escada sem degraus
no corpo vão não volta a primavera
hoje desfolhei-me esquecera-me
e na concha da mão estendi o resto..."
(Teresa Balté)

É CLARO...

"É claro que sei dizer palavras calmas
e amar devagar os que chegam a meu lado
e recordam o meu nome de todas as maneiras
com que ao redor da vida o foram construindo.
É claro que sei inventar cantigas breves
das que à meia-noite perdem as notas mais vibrantes
quando fogem precipitadamente dos nossos bolsos.
É claro que sei voltar a casa e abrir a porta
e fingir que tudo está perfeito sobre a mesa
e os objetos guardam os lugares de sempre
e eu continuo na moldura com um riso de quinze anos
tropeçando no teu ar sério quase a sair do retrato.
É claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo
nas noites em que chegas e dizes já não chove
como se colocasses no meu colo uma prenda de natal
e pudesses apagar a tempestade
no brevíssimo instante em que a vida se resume
aos nossos olhos tentando acreditar que é cedo.
É claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono com o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis...
É claro que sei as palavras mesmo que as não diga
que misturas ao longe com os afiados gumes
com que tentas a custo perdoar-te
as horas roubadas a todos os seus legítimos donos.
É claro que sei fechar as janelas às armadilhas
que as noites constroem dentro dos teus medos
e donde não consegues regressar
e com sorte encontrar numa cômoda
qualquer coisa tua que esqueceste
na pressa da saída e pensar
que foi por mim que ela apareceu
em tão estranho lugar...
-Mas quando entre os ruídos da noite
a tua ausência é a única divisão da casa
que razoavelmente partilhamos
tudo isso serve desculpa de muito pouco..."
(Alice Vieira)

NO CENTRO DO FOGO

"Entra devagar no centro do fogo
guarda para dias mais trémulos e inseguros
as perguntas, os medos, a dor
que sobra sempre do desejo...
Entra como quem morre no centro do fogo
e bebe a cinza que desenha os contornos da cama
onde os joelhos se despem do frio
que os prende à terra.
Entra como quem arde no centro do fogo
e deita na água do meu corpo
as sementes acesas no tempo
que por única herança terás de mim...
Entra devagar no centro do fogo
e lavra-me..."
(Alice Vieira)

GUARDA-ME NO TEU PEITO...

"Guarda-me adormecida para sempre no teu peito
ou deixa-me voar uma vez mais
sobre esta terra de ninguém
onde morro por qualquer coisa que me fale de ti.
Há noites assim em que o silêncio se transforma
ao de leve numa lâmina que minuciosamente
rasga o linho onde ficou esquecido
o corpo que habitamos
em provisórias madrugadas felizes...
Depois é só abrir os braços e acreditar
que ainda faltam muitas horas para a partida
e que à-toa pelos corredores ainda escorre
uma razão primeira a trazer-me de volta.
E eu adormecida para sempre no teu peito.
E eu acorrentada para sempre no teu peito.
E de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas;
porque as palavras certas
estavam todas em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor.
Muito ao longe uma voz desgarrada
estabelece o fim do verão...
E eu adormecida para sempre no teu peito
e eu acorrentada para sempre no teu peito..."
(Alice Vieira)

COISA FELIZ

"Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz..."
(Fernando Pessoa)

ONDE O RIO CANTA

"Desenho a minha ausência
juntamente com as rosas que murcham
mesmo em frente à janela onde escrevo.
Deixei cair umas pétalas,
o ténue fio de um caminho
que se perde antes do horizonte.
Conto as letras que encontrei nos bolsos,
não chegam para nada e não há perguntas,
nada que queira saber.
Uns trocos para pão,
migalhas no caminho onde me esperas
como se eu fosse um pássaro faminto.
Dou-te uma bicada de amor:
é tudo o que ficou fora do desenho.
As árvores dão estalidos
como se o vento se tivesse levantado tão cedo.
Estou aqui de véspera
e nem sequer estou cansada.
Atrás do monte há um roseiral
quando lá chegar direi que estive à tua espera
e será verdade como tudo o que escrevo:
amar-te-ei sempre entre as rosas
que planto ao acaso no papel
onde um rio canta
porque me esqueci de desenhar as margens."
(Rosa Alice Branco)

DIZER DA PAIXÃO...

"Dizer da paixão mais do que o sangue
mais do que fogo trazido ao coração.
Mais do que o golpe furtivo já ardendo
revolvendo na seda a ponta de um arpão
Dizer da febre sem fé do animal feroz
dos líquens abertos e dos lírios.
Dizer desassossego sem razão
da raiva silvando no delírio.
Dizer do prazer o meu gemido
no quanto é ambígua esta prisão
a deixar-me livre no que sinto
e logo envenenada à tua mão..."
(Maria Teresa Horta)

ESPERO-TE...

"Espero-te,
embora estejas a meu lado,
calado e como ausente.
Espero o sinal
para o silencioso encontro
das tuas torres com os meus cumes,
do teu abismo com os meus braços.
Embora digas o meu nome em sonhos,
espero-te
desde esta imensa eternidade,
desde o território do amor,
semeando..."
(Lourdes Espínola)

QUANDO TE PENSO...

"Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso.
E digo sem cerimônias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo se avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?
Penso que o coração
Tem alimento na idéia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve à mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus,
Como de mim a tua fome.
Abre a tua boca.
E grita este nome meu..."
(Hilda Hilst)

O BEIJO VENENOSO

"O beijo venenoso:
a tua voz como um espelho
que acorda lembranças
de tacto em silêncio.
Longe do prazer,
vazia da dor
digo o teu nome,
à beira da minha língua.
E o som rola
como o meu coração:
casca impregnada das tuas mãos
que ainda pulsa
quando cessa o teu apelo."
(Lourdes Espínola)

QUANDO VOLTARÁS?

"Há uma rotação do teu corpo
–Andas pela casa:
és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.
Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo
e entretanto é feita para mim;
atinge-me à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa:
pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra.
Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol
disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?
É como se soubesses que voltará, sim,
e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está.
Quando é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?"
(Manuel Gusmão)

SALVA-ME AGORA

"Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.
No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.
E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia."
(António Franco Alexandre)

COMO TE AMO?

"Como te amo? Deixa-me contar os modos.
Amo-te ao mais fundo, amplo e alto
Minh'alma pode alcançar,
além dos limites visíveis
E fins do Ser e da Graça ideal.
Amo-te até ao nível das mais diárias
E ínfimas necessidades,
à luz do sol e das velas.
Amo-te com liberdade,
como os homens buscam por Justiça;
Amo-te com pureza, como voltam das Preces.
Amo-te com a paixão posta em uso
Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.
Amo-te com um amor que me parecia perdido
Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,
Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida!
-e, se Deus quiser,
Amar-te-ei melhor depois da morte."
(Elizabeth Barrett Browning)

SOBEM-SE AS ÁGUAS

"Sobem-me as águas. Sobem-te as fúrias.
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sobem dores
Tão tardas, tão carecentes.
Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites
Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas,
aguada do que inventei..."
(Hilda Hilst)

SENTIMENTO INCOMPLETO

"Venho rendida,
Já não apaixonada, amor,
A paixão com a persistência
Deixou de queimar,
Como a dor com a persistência
Se deixa de sentir.
Agora venho rendida e calma,
Igual e mansa,
Sem marés vivas
Nem dias de levante,
Sou uma esperança constante,
Uma constante desesperada,
Só, sempre sozinha
Pelos mornos areais alaranjados
Onde ondas poentes
Se quebram em alvura.
Só, sempre pensando em ti,
Tentando não pensar,
Descer ao profundo do mar,
Revolver em mim o universo
Novo infinitamente;
Mas tu vens mais forte que o mar,
Mais forte do que eu,
E em vão tento convencer-me
Que não és,
Que não passas de abstrato desejo,
Sentimento incompleto,
Sem poder condensar-se."
(Teresa Balté)

PEQUENAS CICATRIZES...

"A minha roupa virada do avesso,
com as costuras à mostra:
pequenas cicatrizes do meu corpo.
Procurar equilibrar um anjo
nas tuas longas pernas,
é assim que me tens...
e manténs."
(Lourdes Espínola)

HÁ UMA ÁRVORE...

"Olhamos à volta e não sabemos bem do que se trata.
As mãos estão imóveis há algum tempo.
É dentro delas que cabe tudo o que é nosso.
O rumor que chega com o vento torna-se maior
ao repararmos agora nas folhas.
Alguém principiou a chamar-nos
e é devagar que repete o mesmo nome,
como se houvesse nos olhos qualquer sombra
porque assim é tudo o que se ignora.
Ao longe só ele pôde ver como estão
os caminhos separados e as ondas
se dirigem ao encontro de outras praias.
Ficou ali suspensa uma luz desconhecida,
agora recortada pela neblina que veio com a manhã:
quem se encontra sozinho
talvez conheça melhor o seu segredo.
De novo se fecharam as nossas mãos.
Há uma árvore que desperta
com a sua forma pesada e simples."
(Fernando Guimarães)

SETE MEDOS...

"Sete medos eu tenho
Logo logo vais saber
Medo de não te encontrar
E também medo de te perder
Medo de amar teus carinhos
Medo de me perder no teu abraço
Medo de errar teus caminhos
E esquecer do rumo leste
Medo de não saber navegar
Entre tantos afiados rochedos
Assim conheces seis dos meus medos
Mas o medo maior vou dizer
É o medo de te magoar sem saber
Com esse amor que conheces
Sem limites nem regras e tal
Sei que muito mais mereces
Além desse amor latino,
Uma ilusão, apaixonado menino."
(Evandro Brandão Barbosa)

A AUSÊNCIA DE SI MESMO

"Nós viemos de longe, muito longe,
escapados de nós mesmos, foragidos,
em busca do lugar donde
nos apelavam os sentidos.
Mas tão depressa nos perdemos,
tão depressa a memória das coisas nos fugiu
que, rápida, a estranheza
do tempo nos tomou, como se um rio,
em passando por nós, nos esquecera.
Não é fácil amar-te, não é fácil possuir-se
a ausência de si mesmo.
Mais difícil, porém, é sempre o espaço
a vencer de regresso ao que esquecemos."
(Torquato da Luz)

QUERO SIM!

"Quero distância dos teus olhos,
Do cheiro da tua pele
E do sorriso dos teus lábios.
Quero viver essa ilusão
De que não te amo.
Quero sim!
Quero em segredo
Pensar nos teus beijos,
Abraços e cheiros nunca vividos
Quero sim!
Quero fingir não querer
Sentir as tuas mãos
Enquanto o Pôr-do-sol
Testemunha nossas carícias
Quero sim!
Quero ter medo de dizer que te amo
Pra não te fazer sofrer.
Quero ter a ilusão de que sentes
O mesmo por mim.
Quero, sim!"
(Evandro Brandão Barbosa)

O LIMITE DA PRESENÇA

"A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida."
(Lupe Cotrim)

O TOM ROSADO DA PELE...

"Arrastavas os pés quando te foste.
Cresce musgo agora, sobre os traços dos teus pés,
Tão profundo que não se pode arrancar.
Antes do tempo, caem as folhas neste outono ventoso.
Pares de borboletas
salpicam de amarelo o jardim ocidental.
Entristecem-me.
A minha pele perde o tom rosado.
Se regressares através da Garganta do Rio Azul,
Por favor não te esqueças de me avisar.
Para que eu possa ir ao teu encontro.
Tal é a minha ânsia de te abraçar,
Que não me metem medo o vento de areia,
Nem a distância..."
(Li Bai)

NÓS SOMOS ESTE TEMPO

"É o tempo meu receio;
não o amor, que este perdura.
Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.
Esta brisa entre nós,
este sossego agudo de desejo,
esta presença alerta,
esta carne toda apego certo se apagam:
tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.
É a hora que me assusta:
o amanhã do íntimo ser neutro,
e a unidade uma palavra a mais na posse vã.
O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo."
(Lupe Cotrim)

ERAM DOIS...

"Eram dois
unidos por um depois
que não sabiam quando
ancoradoiro incerto de sentidos
inquietações sofridas em olhares
de perturbadora lucidez
em gestos apenas esboçados
rituais sem o saberem repetidos
e só para eles ainda originais
palavras travadas na garganta
emoção pura
eram dois agora
e por enquanto eram dois
agora e por encanto..."
(David Teles Ferreira)

SOBRE A TUA AUSÊNCIA...

"Não é sobre a solidão,
pouco me importa
quem me desviou palavra,
é sobre a tua ausência
no lugar íngreme da minha pele,
por isso cairei implume
telhado abaixo
debulhado no coração..."
(Valter Hugo Mãe)

DA AUSÊNCIA..

"Sentimento de ausência
Não é o que se chama saudade...
Ausência É algo maior!
Ausência é a sensação de tudo diferente.
Uma fuga no tempo, um vazio na gente!
Uma angústia abstrata suspensa no ar...
Ausência é a presença da perda em cada canto!
A falta desse bem que seria tanto
E que se foi, para não mais voltar...
Ausência está em qualquer coisa...
Nas palavras bonitas de ternura
Que não serão ditas nunca mais...
Ausência está sempre perto de mim.
E eu sempre avisto e encontro ausência,
aonde quer que vá...
Ausência é diferente de lembrança ou de saudade.
É algo maior!
É como se fosse o eco de outro mundo
Zunindo nas coisas, doendo na gente!
É como sumir no vazio profundo
Que fica estranho e fica imenso em derredor..."
(Gilka Machado)

TUA VERDADEIRA ESSÊNCIA...

"Não digo que te amei
por ter possuído o teu corpo,
mas sim por ter roçado a tua alma.
Se pudesse estar apenas perto de ti,
a ouvir a tua voz
e a demorar o meu olhar sobre o teu,
ter-te-ia amado na mesma...
Fiquei presa no que está para lá do visível;
enredada entre as folhas
da tua verdadeira essência..."
(Possidónio Cachapa)

O SABOR DE UM NOME...

"Fere esse dardo, um pedaço de mim
que entra em guerra consigo próprio.
Chama que se atravessa na carne
e luta contra o repouso que se busca.
Duas asas que cobrem a terra e o corpo sangra.
Duas asas lutando por erguer-se e libertar-se da terra.
Lutando por elevar o rosto do anjo ao olhar de deus.
Aí a luz, penetrando a densa camada
que transforma o mundo em escuridão.
A pele esticada sob o céu, os órgãos à transparência.
O desejo. Como um tambor, a pele esticada,
os nervos à superfície.
Pequenos veios esverdeados, cruzando-se infinitamente.
Um dédalo à visibilidade da pele, que estremece.
O céu em cima, o inferno a suportá-lo.
O corpo algures, a desejar o nome,
em fúria adocicada de querer fundir-se num outro,
de que procura o nome.
Suspende-se nas asas do tempo, fulge na memória,
procura o intervalo entre dois instantes.
Nem passado nem futuro.
O instante do Agora. O Aqui onde é.
A pele estremece entre os lilases da noite,
perde-se na saliva salgada do mar.
O corpo enlouquece à procura do nome que o faz vibrar.
Esse dardo traz consigo o sabor de um nome..."
(Maria João Cantinho)

MEU CORAÇÃO EXPANDE...

"O meu corpo executa um drama.
Anoitece. Perde luz.
Dobram-se os joelhos que me regem.
Deito-me de bruços.
A mão no ar suspensa.
Sinto-me em decréscimo.
O Amor que me arruína lavra-me de fogo.
As coisas apodrecem.
É o inferno que existe antes do Inverno.
Cascas, folhas, madeiras consumidas.
Todo o meu corpo se escurece.
A boca contra a terra ou contra Ela.
O Amor cada vez mais perplexo.
Os olhos meio abertos
por onde se escoam fumos e melancolias.
Deito-me por completo.
A cama é-me um reflexo.
Cubro-me com o lençol da terra, mudo.
O corpo faz-se ainda mais escuro.
Vermes no meio do sepulcro.
Terra, corpo onde emudeço por completo.
Por dentro a ferida faz-se mais viva.
Pena rubra.
Ao meio, as Serpes etílicas, rarefeitas
quase evanescentes. Entrego tudo.
Começam no céu a arder as estrelas.
É noite.
Ardem em lugares cada vez mais distantes.
Levanto-me todo branco.
Os astros que brilham na noite
são o amor que solitário
meu coração expande..."
(António Cândido Franco)

PARA SALVAR OS NÁUFRAGOS

"Vou falar-te das vezes que morri,
sufocada de sombras, tão capaz me sinto de morder
as lembranças que intimidam minhas mãos.
Ele entrou, subitamente, no meu sorriso esquivo
e eu retornei, mansamente, à raiz da ternura,
em multiplicado espanto.
Por isso, quero escrever, sem confidências,
os vestígios da maresia
nos meus olhos submersos nos dele
e deixar que a fogueira que me arde no olhar
ateie um lume mais noturno.
Perdi a inocência mal o avistei.
Reconhecer-lhe-ia os passos à máxima distância,
tão nítida se tornou para mim a sua sombra.
Às vezes, de madrugada,
a minha pele tinha o cheiro dele,
como se me tivesse abraçado a noite inteira.
Apetecia-me, então, roçar-lhe os dedos no peito,
ou tomá-lo nos braços, como quem embala um filho.
Diz-me tu: como evitar esta emboscada
de me deixar dominar
pela excessiva claridade do seu rosto?
Dizem que aqueles que o seguiam
traziam sobre os olhos um novo sistema solar,
onde era possível ver no escuro
todas as margens dos rios
e ouvir no firmamento todo o silêncio do mundo.
Mas eu não sabia que, em suas mãos,
se abrigavam os barcos regressados da faina
e que os pescadores
recolhiam as redes nos seus dedos.
Eu não sabia que o bando de pássaros que o seguia
amainava os ventos e as águas noturnas,
para que o luar nos embalasse.
Eu não sabia que lhe bastava olhar as conchas
para salvar os náufragos,
ou fitar os meus olhos para que eu me perdesse..."
(Graça Pires)

UM CORPO VIVO...

"Tenho um corpo vivo,
de palavras e contornos,
um murmúrio perdido no tempo.
Um corpo que anseia
o oceano, a foz.
Tenho um corpo que não se cala
ainda que eu silencie.
Tenho uma canção no corpo,
devia ser para ti..."
(Silvia Chueire)

NA PALMA DA MINHA MÃO

"Alguém pode me dizer
se estava prevista na palma da minha mão
esta paixão inesperada
se estava já escrita e demarcada
na linha da minha vida
se fazia já parte da estrada
e tinha que ser vivida
ou foi um desgoverno repentino
que surpreendeu os deuses, todos
os que desenham o nosso destino
ou foi um desatino, uma loucura
uma imprevisível subversão
que só a partir de agora eu trago
marcada na palma da minha mão..."
(Bruna Lombardi)

A DOR DE CALAR...

"A dor de não dizer dói mais que a dor
de a ninguém dirigir-se no deserto
num palavrório de sentido incerto.
Se viver, para mim, fosse indolor,

só se a alma houvesse sido surda e cega.
Vejo que não me ouves nem me vês
por mais que eu te alinhave os meus porquês
ao pé de tua vista que me nega

o dom mais-que-valioso de te olhar
e dizer-te o que mais me doerá
se não disser. E -sinto a tua falta-

digo e repito nítido e em voz alta,
que entre todas as dores que me assaltam
só mesmo a de calar ainda falta."

(Tite de Lemos)

O NOSSO NOME ESTAVA CERTO...

"Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo..."

(Natália Correia)

ÀS VEIAS PARADAS DO SANGUE...

"Se alguém disser que morri,
avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o meu corpo
da espuma dos planetas.
não deixes que o meu rosto
se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome
até que o mar ascenda à tua boca.
e de luar em luar celebra o coração
que fiz teu, mudamente,
como se o amor fosse sobreviver
às veias paradas do sangue..."
(Vasco Gato)

DIAS INÚTEIS

"Ficarão perdidos os dias
que não tivemos juntos.
Dias inúteis
encostados a paredes e muros envelhecidos.
Dias sem calendário,
horas evasivas e fugidias, desperdiçadas,
afundadas em rios sem margens nem pontes,
noites, noites e mais noites
deitadas fora como casas desabitadas..."
(Carlos Lopes Pires)

CADA GESTO DE AMOR...

"O mais terrível é sentirmos
a irreversibilidade do tempo.
Que mesmo quando tudo se repete,
já nada se repete, pela primeira vez.
E que nós gastamos como borrachas
na demorada corrosão das coisas.
Um dia acordamos e já não é a primeira vez.
A não ser quando a paixão nos diz
que, nupcial e navegante,
cada gesto de amor é sempre o primeiro..."
(Eduardo Prado Coelho)

E ASSIM TE AMO...

"Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada
pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!..."
(Adalgisa Nery)

A AUSÊNCIA...

"Do dia em que saíste sobrou a insônia
método mais que imperfeito para medir as noites
os lábios quando já desistiram de ordenar palavras
insistem no passado...
Apago as luzes.
Não quero que a ausência seja bonita
mas o esquecimento não te faz transparente..."
(Maria Sousa)

DESDE QUE NOS DEIXASTE...

"Desde que nos deixaste
O tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa
Não irrompeu em labareda
Ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo
nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer
–fosse abertura–
E a saudade é tudo ser igual..."
(Daniel Faria)

AO FUNDO DO QUE ME DESTE

"Em quem pensar, agora, senão em ti?
Tu, que me esvaziaste de coisas incertas,
e trouxeste a manhã da minha noite.
É verdade que te podia dizer:
-Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem,
sermos o que sempre fomos,
mudarmos apenas dentro de nós próprios?-
Mas ensinaste-me a sermos dois;
e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide.
Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo,
ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios,
mesmo esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo,
para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.
Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti
para te ver chegar:
com a surpresa dos teus cabelos,
e o teu rosto de água fresca que eu bebo,
com esta sede que não passa.
Tu: a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti,
como gostas de mim,
até ao fundo do mundo que me deste..."
(Nuno Júdice)

PALAVRAS JAMAIS ESQUECIDAS...

"Escolhe-me o caminho da saudade
E um sorriso anuncia-te em meus lábios
Trazendo-me todos os sóis
Que me iluminam em teus olhos
Desato-me de qualquer solidão
Envolta pelo abraço que ainda te guarda
Demora-se o meu pensamento em ti
Quando a manhã despede-se da última hora
Mira-me um céu colorido por todo azul
Enquanto uma brisa assobia-me lembranças
Folheando as páginas em que me escreveste
Com o idioma das tuas mãos
Escuta-se um silêncio em meu olhar
Quando vens ao meu encontro
E repetimos as palavras jamais esquecidas..."
(Fernanda Guimarães)

PARA ENFEITAR O CÉU ESTRELADO...

"A minha solidão não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio onde nem sequer
há portas para o calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
-mesmo quando me queima a pele o teu suor-
sem carne em comum com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
-e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia.
E até, quando a toco,
a própria pele me parece alheia.
Não. A minha solidão não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado.
...Mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra
para sentir um Corpo Vivo a meu lado..."
(José Gomes Ferreira)

NÃO SE VÊ NADA DO AMOR...

"Um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo.
Lá fora o meu desejo assassina o mundo
a noite não existe porque a deixaste
no movimento de pedra dos meus braços.
Daqui onde estou quem te era
não se vê nada do amor..."
(Pedro Sena-Lino)

NA TUA PELE...

"Leio o amor no livro da tua pele;
demoro-me em cada sílaba,
no sulco macio das vogais,
num breve obstáculo de consoantes,
em que os meus dedos penetram,
até chegarem ao fundo dos sentidos.
Desfolho as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se juntam, como corpos,
no abraço de cada frase.
E chego ao fim para voltar ao princípio,
decorando o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele..."
(Nuno Júdice)

O CAMINHO QUE EXISTE ENTRE NÓS...

"Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.
Não saberei precisamente quando me verás,
nem se compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que têm as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...
Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que a tua voz continuará chamando por mim,
obstinada,
embora eu não possa estar mais perto
nem mais viva, e se tenha acabado o caminho
que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais..."
(Cecília Meireles)

ESTAMOS AQUI...

"Naqueles dias frios
em que nada se move no mundo
só uma chuva muito fina
a esconder as ruas
e estas mãos tão próximas
porque acredito em ti
e nas árvores...
E encontro os teus passos
onde o meu coração dorme
porque tudo no mundo
me fala de ti...
E então acredito
que por alguma coisa grande
estamos aqui..."
(Carlos Lopes Pires)

CÍRCULOS DE VIDA

"Continuo sempre me inaugurando,
abrindo e fechando círculos de vida,
jogando-os de lado, murchos,
cheios de passado.
Por que tão independentes,
por que não se fundem num só bloco,
servindo-me de lastro?
É que eram demasiado integrais.
Momentos tão intensos, vermelhos,
condensados neles mesmos
que não precisavam de passado
nem de futuro para existir..."
(Clarice Lispector)

DE MIM, APENAS SEI...

"Conheço em mim a teima
do propósito
apaixonado anseio de alma solta.
Uma constante chama
outra e outra
a reacender no corpo o gosto desatado.
Reconheço a planta
onde o veneno tapa
o bicho adormecido no seu fundo.
Um tigre um milhafre,
uma pantera.
De mim apenas sei
o que é do mundo
naquilo que é incêndio dói e espera..."
(Maria Teresa Horta)

NÃO ADORMEÇAS JÁ...

"Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.
Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.
O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres..."
(Maria do Rosário Pedreira)

QUANDO VIERES...

"Quando vieres, de mãos vazias:
há de enchê-las um vento de carícias
como o que acena aos barcos ancorados.
Quando vieres, vem de olhos perdidos:
logo se encontrarão noutra paisagem.
Traze vazio o coração também:
sempre entra um pouco das águas que lambem
as réguas e os rebites do costado.
Quando vieres, vem sem rumo feito
-como quem sabe mar e crê em viagens."
(Geir Campos)

ENQUANTO HOUVER ESSA MAGIA

"Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta, eternamente
recomeçando a cada dia como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes
para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia..."
(Lya Luft)

AMOR INTENSO E SÚBITO

"De esperas construímos o amor intenso e súbito
que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.
Em estranhos desencontros nos amamos.
Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.
Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,
a tarde projectava as suas grandes sombras
enquanto as gaivotas disputavam sobre a água
talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.
As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias
E por muito tempo permaneciam assim, unidas,
Machucando-se,
torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.
Depois olhávamo-nos nos olhos No mais profundo silêncio.
E, sem palavras, partíamos com as mãos docemente amarradas
e os corações estoirando uma alegria breve
Quando a noite descia apaixonada
Como o longo beijo da nossa despedida..."
(Joaquim Pessoa)

INCÊNDIOS DA ALMA

"Não me fales de incêndios da alma,
Nem da linguagem dos amantes.
Antes, prova dos meus olhares
Do amor que só se sabe em ti.
Já me disse incontida, desmedida,
Quando sequer te percebes em mim.
Deixa que me confesse inteira,
Muito além da voz que supões.
Estou farta de emoções sussurradas
Pronunciadas no peito como cristal
Quero-te antes de qualquer palavra
Na entonação que apenas tu adivinhas.
Não me digas de qualquer alvorecer
Onde não me trazes o sol, a ternura.
São teus olhos que me despertam
E me oferecem o aroma da vida.
É a doçura inquieta das tuas mãos
Néctar que veste os meus sonhos.
O dia que vejo é este em que me tomas
Quando vens antes de mim e dos sentidos
Quando me confidencias tuas saudades
E os caminhos em que me levaste
Em tuas ausências consentidas.
Não me fales de aritméticas
Dessa memória incisiva do tempo.
Meu coração desconhece algarismos
E contagens que afastam e distanciam.
Prefere-se a juntar passos, estradas
Desaprendeu dos números, da lógica
Entende-se somente em interseções
Compreende que pontos podem ser ligados
E assim, abraça-se descobrindo retas
Somando urgentes encantos e afinidades.
Não pressuponhas as rasuras de minhas dores.
Nada sabes dos abismos dos meus silêncios,
Quando o sentir é açoite pelo não expresso.
Tenho marcas palpáveis, cuja agonia e soluço
Só me sabe o escuro em que mergulho.
Apenas adentra as portas que te abro.
Anda devagar, como se deitasses em pétalas.
Não me peças para diluir na taça do impossível
Os sonhos, os desejos, os tolos tremores
Que transbordam insones em luas prateadas.
Não me ofereças o véu do comedimento
Para cobrir a alma, a carne, os sentidos
Sim, continuarei a te fazer versos,
Ainda que te conjugue imperfeitamente
Neste meu desassossego de letras,
Tropeçando em rimas, ébria de metáforas.
Mesmo que não alcance o lume dos teus sonhos,
A profundidade do que tua alma abriga,
Deixarei o eco deste amor que me guia
Na fragrância do dizer da minha poesia.
Bebo-te nesta taça até o último trago
Onde vezes te derramas quase meu..."
(Fernanda Guimarães)

VENTOS FAVORÁVEIS

"Vens de repente com a voracidade
de um pássaro noturno que não chamei
e a porta fecha-se sobre as minhas ancas
e a noite bebe o hálito que largas na minha pele
enquanto os espelhos escondem o rasto
de todos os segredos que guardavas.
Por momentos o amor desenha-se desta única maneira
mas eu sei que és apenas um inquilino temporário
habitando o meu corpo as horas que roubaste
em ondas de culpa e sombra...
E sei também que hás-de sair de mim
como de um povo inimigo
procurando um gesto de perdão que não existe
e o amor torna-se subitamente num lugar incómodo
tenho pressa,dirás, tenho pressa
e a noite fecha-se do lado dos dedos
que procuram ainda o lugar do sono.
Fica comigo, peço, mas tu não me ouves
e eu sei que vou voltar
a esperar por ti na vida que me resta
e em todas as vidas e em todas as mortes
até ao dia em que difinitivamente
despeças o teu corpo do meu
e eu repita: fica comigo
e tu, desapareças...
Como quem esteve só à espera
de ventos favoráveis..."
(Alice Vieira)

OS OLHOS DO AMOR...

"Entre a saliva e os sonhos
há sempre uma ferida
de que não conseguimos regressar...
E uma noite a vida começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios..."
(Alice Vieira)

NA PONTA DOS MEUS DEDOS

"Vou moldar-te na ponta dos meus dedos
e sem angústias nem medos matar a fome de ti.
Vou apagar o fogo que por dentro me queima,
teimoso e lento,
desde a primeira hora em que te vi.
Vou prender-te na teia de ternura
que sempre me vela os olhos
doidos à tua procura
quando escapas dos meus sonhos.
Vou dizer que te amo a toda a gente
e gravar o teu nome nas esquinas,
alheio de todo à má sina
que nos impede de ir em frente."
(Torquato da Luz)

NAS LINHAS DA MÃO

"O sono retirou-se do meu corpo
e as cigarras atormentam as minhas noites.
Depois de teres partido, os lençóis da cama
são como limos frios que se agarram à pele.
Porém, se me levanto, não faço mais
do que arrastar a solidão pela casa;
talvez procure ainda um gesto teu
nos braços do silêncio, como um pombo cego
a debicar as sombras na única praça deserta da cidade
-o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão."
(Maria do Rosário Pedreira)

AMOR COMEÇA TARDE...

"Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde."

(Carlos Drummond de Andrade)

ESTA SAUDADE ÉS TU...

"Esta saudade és tu.. . E é toda feita
de ti, dos teus cabelos, dos teus olhos
que permanecem como estrelas vagas:
dois anseios de amor, coagulados.

Esta saudade és tu ... É esse teu jeito
de pomba mansa nos meus braços quieta;
é a tua voz tecida de silêncio
nas palavras de amor que ainda sussurram.

Esta saudade são teus seios brancos;
tuas carícias que ainda estão comigo
deixando insones todos os sentidos.

Esta saudade és tu ... É a tua falta
viva, em meu corpo, na minha alma, viva,
...enquanto eu morro no meu pensamento."

(J. G. de Araújo Jorge)

É TEMPO DE ME VERES...

"Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar..."
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

MINHAS ÚLTIMAS PALAVRAS

"Estas serão as minhas últimas palavras
aos teus sentidos,
serão o meu apelo derradeiro.
Tanto te disse, tanto te escrevi!
Como encontrar agora o período preciso,
a perfeita expressão,
para te revelar este silêncio estranho
que me começa a ungir o exausto coração?!
Vieste-me na hora dadivosa,
na hora imortal da frutificação:
dei-te toda a doçura dos meus pomos
e voltaste-me as costas com prazer...
Mas eu bendigo essa tua fome
que saboreou os frutos
que haviam de mais tarde apodrecer.
Foste a montanha azul que me atraiu os passos;
em cujas arestas agressivas
rasguei meus sonhos, despenhando-me...
Porém, daqui,
da alfombra deste vale de desfalecimento,
como teus longes me seduzem ainda,
como me apareces belo,
que saudade de ti, minha montanha azul!
Sou olhos e não tenho visão;
sou boca e tudo me parece insípido;
e meu tato não sente os espinhos que colhe
na solidão em que me deixaste;
e em vão as rosas da primavera
abrem os lábios ao meu olfato.
Só a tua lembrança
conserva vivo um pouco de meu ser.
Só a tua saudade
prende-me ainda à beleza da vida.
Onde estás?! Onde estou?!
Sou um corpo que espera a alma
para acabar de morrer..."
(Gilka Machado)

AS MARCAS DOS PUNHAIS

"As noites são uma febre e tu sabes disso.
mais ou menos leve, mais ou menos violenta.
acossa os que têm medo da dor.
É na noite que determinados encontros acontecem
as feras e os seus pecados evadem-se dos olhos
pássaros de fogo atravessam,
ininterruptamente, os desassossegos
e explodem em espasmos de fogo
que se arremessam livremente
em todas as direcções,
queimando os limites dos espelhos.
Ouço-te, no sussurro precário que pernoita ao largo
ouço-te pela madrugada inerte e despojada de paisagens.
Sei que, na proximidade vertiginosa das sombras
se desprende dos braços o abraço, e nómada escorre
discorre da parede mais próxima a certeza de que não
partirás enquanto não se apagarem as luas, transformistas;
de que não partirei
enquanto não se estilhaçarem os seus reflexos
nas águas duras do rio habitamos
a primeira morada da desolação,
noite dentro tecendo outros corpos de soturnas vogais,
nomeando peles animais em construções de fogueiras mansas
engolindo a acidez da saliva vazia
do latejar permanente do teu sémen
espiando os sulcos da ausência, discretos,
sob as marcas dos punhais
nos pulsos inflamados como papoilas..."
(Ana de Sousa)

OS AMANTES

"Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente."

(Carlos Drummond de Andrade)

AQUELES OLHOS...

"Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de amor,
Que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor covarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?"
(Irene Lisboa)

QUATRO LETRAS...

"Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. -De arma branca-
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas."

(Manuel Alegre)

AMOR À DISTÂNCIA

"De longe te hei-de amar,
-da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência."

(Cecília Meireles)

TUDO ME DÓI...

"Há dias em que tudo me dói.
Doem-me as mãos que desconheço
esfomeadas de dias, dói-me o olhar,
que se fecha diante da noite,
dói-me tudo, sem fim.
Doem-me os homens que matam
em nome de nada,
doem-me a guerra e a hipocrisia
dói-me o mundo, por dentro de mim,
doem-me as ruas desertas das cidades
aos fins-de-semana
e doem-me os rostos de quem me olha,
como se nada houvesse para te dar.
Dói-me até a própria dor.
E também me doem a ignorância e a soberba,
doem-me as crianças que caminham descalças,
e dói-me a sua alegria de não haver alegria,
doem-me a esperança
e o otimismo generalizado de quem anda cego,
dói-me a indiferença de quem pode,
dói-me tudo, até à agonia.
E também me dói a música,
doem-me os livros que nunca lerei
e doem-me os que amei
e dói-me de coração colado aos lábios,
e dói-me a cegueira do homem,
à procura de uma rosa
na penumbra do olhar.
E doem-me os labirintos onde nos perdemos,
os sonhos e as vielas,
onde perdemos amigos,
e doem-me esses amigos que já morreram
e que nos olham, do alto da sua claridade azul.
E dói-me tudo, até quase deixar de me doer,
dói-me tanto, até já nada fazer sentido.
E também me dói o vento
e as árvores carregadas de frutos,
doem-me as searas maduras de verão
onde o sol brinca com a memória,
entre espasmos de luz dourada,
doem-me a fraternidade que não existe,
dói-me o amor e dói-me a vida
cintilando na brevidade de cada flor,
doem-me as papoilas, os prados
onde o olhar se perde à procura de um lugar,
que vem lembrar-me o que não me doía.
E dói-me tudo, em certos dias,
que de tanto doer não parecem dias..."
(Maria João Cantinho)

JUNTO AO FIM...

"As coisas demoram o que eu não queria.
E se um dia voltar para trás
tenho a companhia inútil de gestos gastos,
passo despercebido entre a sombra da parede,
junto à parede, parado junto à parede.
As coisas demoram trazendo sempre penas,
queixumes, a idade começa a cair.
Desapareço enfim sobre o nevoeiro do rio,
ao longe marcas de cinza e pó
limitam a única estrada.
E se houver um olhar a ir ter
com o vagaroso afastamento
é só uma razão de despedida,
o anúncio da morte.
Esse precipício olhado pela certeza de haver,
o já perdido encanto dos dias a perder-se
e depois a medo voltando seguindo o rio.
A pressa calou a sua vontade,
há gritos fundos de dor e alegria
junto ao fim..."
(Helder Moura Pereira)

TUDO ACABADO...

"Tudo acabou entre nós.
mas não sei que voz
insiste em prolongar a melodia
que vai do sol à última lua sem luar...
Esperança:
o teu nome verdadeiro é teimosia
de querer ouvir as pedras a cantar."
(José Gomes Ferreira)

ESSE MAR DEPOIS DO MAR...

"Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser
a minha própria espera...
Mas eu deito-me no teu leito
quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar..."
(Mia Couto)

CAMPO DE FLORES

"Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus, ou foi talvez o Diabo, deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente.
De uma grave paciência ladrilhar minhas mãos.
E talvez a ironia tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde."
(Carlos Drummond de Andrade)

NA ALEGRIA REVOLTA DA TERRA...

"De muitas formas se diz a minha luz
De muitos modos me visita o meu anjo
Vem devagarinho...
por dentro me rasga com navalhas de cristal;
veste-me de âncoras na turbulência dos abismos;
molda-me com esperas na voraz negritude da cidade
Às vezes, na deriva repetida das pedras,
na solidão dos bosques,
enfeita de estrelas os espelhos onde me deito.
De muitas formas se diz a minha luz
vem comigo ao sussurrar das ondas,
e aí, no janelo da tarde, lê-me
para que a minha tristeza não alastre;
desliza também nos palácios dos subúrbios,
nos espaços nevados de safiras e brilhantes,
onde a melancolia, redil de gestos impossíveis,
inventa reinos que só eu habito.
De muitas formas se diz a minha luz por fim,
numa pausa de murmúrios,
numa paleta de cheiros bem fortes
deixa o meu corpo feliz
na alegria revolta da Terra..."
(Victor Oliveira Mateus)

O FIM DESTA ESPERA!

"As lágrimas que dos meus olhos caem
São o teu pranto em mim realizado.
As tuas penas em mim se vivificam
E o teu sofrer em mim encontra forma.
O teu silêncio é a minha voz mais funda,
O teu querer, a minha esperança intensa,
De sorte que não existe morte
Tua que a mim me não pertença.
E a solidão que de alma a alma aumenta
O anseio do encontro antigo,
É a inarmonia que vive
Da diferença que a desunião gera.
Reúne-te comigo no meu chamamento,
Reúne-te comigo ao que nos demora,
E levemos conosco o fim desta espera!"
(Ana Hatherly)