sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O QUE ME TRAZ O TEMPO

"Hoje, não mais me iludem as ondas desse mar verde-azulado.
Precavido, prefiro a segurança de contemplá-las à distância
pois bem sei da sedução e da magia que exercem sobre mim.
Assim, contento-me em sabê-las ali no constante vai e vem
lambendo os pés de outros pobres seres distraídos
que ainda não se sabem seus cativos.
Entretanto, eu,
não mais me deixo arrastar pelas marés como outrora,
qual folha desgarrada da árvore lançada à sorte pelo vento.
Já não me envolve como antes o barulho de tuas águas
quando zombeteiras lançam-se no rochedo,
nem me preocupa a força de tuas ressacas.
Confesso! nem mesmo sinto aquele desejo insano
de beber todo teu azul na esperança vã de matar minha sede.
Não me incomodam mais os pescadores
a lançar sobre ti as redes,
tampouco me hipnotizam os raios de sol no entardecer
quando devagar adentram tuas águas
e se entregam lânguidos aos teus braços.
Agora nem o clarão da lua cheia
que te enche de mistérios me faz perder o prumo.
Bem ancorado em tuas praias,
não mais serei barco à deriva a mercê de teu fascínio
me apontando o rumo
até que no horizonte infindo eu desapareça.
Mas cuido carinhosamente de teu leito
para que possas descansar em paz
nos braços de quem te mereça."
(José Maria Alves Nunes)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A LUA LÁ FORA...

"Lá fora há uma lua encoberta pelo véu das águas;
uma claridade melancólica enche os céus
enquanto ouço o silencio da noite,
o silêncio de todas as coisas, o meu silêncio, o teu silêncio...
Quantas palavras são ditas em silêncio?
Quantas declarações de amor, de guerra
ou de adeus são feitas em silêncio?
Silêncio solene como esse que se instaurou agora...
Silêncio disfarçado em palavras,
palavras vazias, perdidas no tempo, no espaço,
no seu mais profundo significado... apenas palavras!
Uma música doce e forte semelhante em muito a tua voz,
preenche os vazios do Universo,
os caminhos da lua, essa mulher misteriosa e só,
admirada, cobiçada mas só...
A Lua é um pouco como você que chegou de repente,
invadiu tudo, encheu de beleza e cor
um espaço triste quase morto e quando podia,
enfim, desfrutar de sua criação começa a sair devagarzinho...
Mas, olha, a lua nunca diz que já vai ou que o dia está nascendo:
Você olha e olha e parece que ela ainda está ali,
e você vai olhando e a lua dentro dos seus olhos
lhe deixa impressão que não se foi;
você pisca e nesse átimo surgiu o sol
e ninguém nem sabe como a lua desapareceu!
É uma forma elegante de dizer Adeus,
é uma forma dolorida de sentir o adeus
porque fica tudo pairando no ar :
Já é dia mas parece que ainda há tempo para a madrugada;
você já foi, mas ainda diz que não
e eu tonto quero sim acreditar
que a cotovia ainda não cantou..."

PIRATA

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

DECLARAÇÃO

"Declaro-me pouco,
sempre silencio.
Faço ir e vir o caminho
onde me teço.
A minha voz nunca é clara.
Ao destino que traço, pago o preço.
O meu grito é raro.
Não declaro o que digo.
Quando calo, me anuncio.
Permaneço no retorno,
negando meu passo na partida.
Por não ver o tempo e o espaço,
faço do fim meu começo..."
(Conceição Bentes)

A GENTE SE ACOSTUMA...

"Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma
a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma à poluição,
à lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não colher frutas do pé,
a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada,
a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo
e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta,
e que, de tanto acostumar,
se perde de si mesma..."
(Marina Colassanti)

O DESAPARECIDO

"Tarde fria, e então eu me sinto
um daqueles velhos poetas de antigamente
que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria,
e então eu sinto uma saudade muito grande,
uma saudade de noivo,
e penso em ti devagar, bem devagar,
com um bem-querer tão certo e limpo,
tão fundo e bom que parece
que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas,
bobagens para todo mundo me achar ridículo
num dia sem assunto, uma crônica de rapaz;
e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz,
apenas um menino,
com o amor teimoso de um menino,
o amor burro e comprido de um menino lírico.
Olho-me no espelho e percebo
que estou envelhecendo rápida e definitivamente;
a minha imagem vai-se apagando,
vou ficando menos nítido,
estou parecendo um desses clichês
sempre feitos com fotografias antigas
que os jornais publicam de um desaparecido
que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida,
inútil foto se publica num canto
de uma página interior de jornal,
eu sou o irreconhecível,
irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca,
mas só tu sabes que em alguma distante esquina
de uma não lembrada cidade
estará de pé um homem perplexo, pensando em ti,
pensando teimosamente,
docemente em ti, meu amor..."
(Rubem Braga)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

PEQUENO TRATADO SOBRE A MORTALIDADE DO AMOR

"Todos os dias morre um amor.
Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor.
Às vezes de forma lenta e gradativa,
quase indolor, após anos e anos de rotina.
Morre em uma cama de motel
ou em frente à televisão de domingo.
Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas,
sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios.
Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados,
cartas cada vez mais concisas,
beijos que esfriam aos poucos.
Morre da mais completa e letal inanição.
Todos os dias morre um amor.
Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro.
Todos os dias morre um amor,
embora nós, românticos mais na teoria do que na prática,
relutemos em admitir.
Porque nada é mais dolorido do que a constatação de um fracasso.
De saber que, mais uma vez, um amor morreu.
Porque, por mais que não queiramos aprender,
a vida sempre nos ensina alguma coisa.
E esta é a lição: amores morrem.
Todos os dias um amor é assassinado.
Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença,
a forca do escárnio, a metralhadora da traição.
A sacola de presentes devolvidos,
os ponteiros tiquetaqueando no relógio,
o silêncio ensurdecedor depois de uma discussão:
todo crime deixa evidências.
Todos nós fomos assassinos um dia.
Há aqueles que preferem se esconder debaixo da cama,
ao lado do bicho-papão.
Outros confessam sua culpa em altos brados,
fazendo de pinico os ouvidos de infelizes garçons.
Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime,
e buscam por novas vítimas
em salas de chat ou pistas de danceteria, sem dor ou remorso.
Os mais periculosos aproveitam sua experiência
difundindo ao mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.
Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia:
corcéis feridos.
Existem os amores-zumbis,
aqueles que se recusam a admitir que morreram.
São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra
teimando em resistir à base de camas separadas,
beijos burocráticos, sexo sem tesão.
Estes não querem ser sacrificados,
e se alimentam de cérebros humanos,
definhando paulatinamente até se tornarem laranjas chupadas.
Existem os amores-vegetais,
aqueles que vivem em permanente estado de letargia,
comuns principalmente entre os amantes platônicos,
mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor,
pois amor vivido só do pescoço pra cima não é amor.
Existem, por fim, os amores-fênix.
Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência,
das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos,
da TV ligada na mesa-redonda ao final do domingo,
das calcinhas penduradas no chuveiro
e das brigas que não levam a nada,
ressuscitam das cinzas a cada fim de dia
e perduram - teimosos, e belos, e cegos, e intensos.
Mas estes são raríssimos, e há quem duvide de sua existência.
Alguns os chamam de amores-unicórnio,
porque são de uma beleza tão pura e rara
que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas.
Mas não quero acreditar nisso..."
(Alexandre Inagaki)

O AMOR MADURO

"O amor maduro não é menor em intensidade.
Ele é apenas silencioso.
Não é menor em extensão.
É mais definido colorido e poetizado.
Não carece de demonstrações.
Presenteia com a verdade do sentimento.
Não precisa de presenças exigidas.
Amplia-se com as ausências significativas.
O amor maduro tem e quer problemas, sim, como tudo.
Mas vive dos problemas da felicidade,
Que são formas trabalhosas de construir o bem, o prazer.
Problemas da infelicidade não interessam ao amor maduro.
Na felicidade está o encontro de peles,
o ficar com o gosto da boca e do cheiro do outro
- está a compreensão antecipada, a adivinhação,
o presente de valor interior, a emoção vivida em conjunto,
os discursos silenciosos da percepção, o prazer de conviver,
o equilíbrio de carne e de espírito.
O amor maduro é a valorização do melhor do outro
e a relação com a parte salva de cada pessoa.
Ele vive do que não morreu,
mesmo tendo ficado para depois,
vive do que fermentou
criando dimensões novas para sentimentos antigos,
jardins abandonados, cheios de sementes.
Ele não pede, tem.
Não reivindica, consegue.
Não percebe, recebe.
Não exige, oferece.
Não pergunta, adivinha.
Existe, para fazer feliz."
(Artur da Távola )

O QUE É O AMOR?

"Quem nunca amou,
pode achar que sabe mas não sabe.
Amor é único, não parece com nada.
O que mais se parece com amor deve ser chocolate.
Quando agente tem vontade de comer chocolate
não serve mais nada. Só chocolate mesmo.
É uma coisa em si.
No fundo, todo mundo que vive em desamor,
de forma pontual ou em longas doses
ao longo dos anos, vai ficando amargo.
Depois azedo. Depois, podre.
As pessoas ruins, ácidas, infelizes,
que não sentem prazer,
vivem anestesiadas.
São sempre as mais ranzinzas,
as mais chatas, as que alfinetam,
as que ferroam sem parar.
Não são rompantes normais da ira,
é um azedume que contamina tudo,
uma humidade triste de quem vive sem luz,
onde o bolor diário da inveja cresce.
É triste, isto.
Gente que vive embolorada por dentro,
por falta de amor e sol.
Lamento por todas elas.
Porque se elas se lançassem ao amor,
mudariam num instante..."
(Rosana Hermann)

O INSTANTE...

O próximo instante é feito por mim?
Ou se faz sozinho?
Fazemo-lo juntos com a respiração.
E com uma desenvoltura de toureiro de arena.
Eu te digo: estou tentando
captar a quarta dimensão do instante
- já que de tão fugidio não é mais
porque agora tomou-se um novo instante-
já que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é.
Quero apossar-me do é da coisa.
Esses instantes que decorrem no ar que respiro:
em fogos de artifício eles espoucam mudos no espaço.
Quero possuir os átomos do tempo.
E quero capturar o presente
que pela sua própria natureza me é interdito:
o presente me foge,
a atualidade sou eu sempre no já..."
(Clarice Lispector)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

MAIS UMA BALADA DO AMOR INABALADO

"Para ela todos os homens eram bons,
alguns nem sabiam quanto de bondade havia neles
e se escondiam em sua própria sombra.
Para ela alguns homens eram mais do que podiam ser.
Ouviram a vida inteira que homem não chora
e passaram a vida enxugando lágrimas
em travesseiros embolorados,
engolindo soluços contidos na garganta
e guardando suas emoções em sorrisos amarelos.
Para ela os homens falavam linguagens diferentes.
Ás vezes rudes, outras vezes polidas,
mas no íntimo com tamanha simplicidade
que se tornava incompreensível aos ouvidos de mulheres
tão cheias de senões e porquês.
Para ela todo homem lavava o rosto pela manhã
com uma dose de coragem,
mascarada em uma espuma de barbear,
necessária para desempenhar o papel
que a sociedade lhe cobra a cada momento...
Para ela todo homem buscava a mulher única,
que lhe bastasse por toda uma vida,
em vão batendo de porta em porta,
tremendo a cada encontro,
procurando desesperadamente
e morrendo de medo de nunca encontrar.
Para ela todo homem era um desafio.
Seu olhar um convite para um debate,
onde não existem perdedores,
que dia após dia se descobrem e se misturam,
até não saberem onde começa e onde termina alguém.
E toda mulher que já tenha encontrado um,
sabe do que estou falando....
Daquele dia em diante,
olhará para os homens com o olhar crédulo
e um sorriso no rosto.
E em seu coração tocará sim uma balada,
mas de amor inabalável..."

SOBRE A SOLIDÃO...

"Dei-te a solidão do dia inteiro.
Inventei a dança para me disfarçar
Na praia deserta,
brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante
às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.
Rompesse o nevoeiro.
Todo o milagre, toda a maravilha
Torna mais funda a minha solidão.
E todo o esplendor p'ra mim é vão,
Pois não sou perfeição nem maravilha..."
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

EU POSSO ESPERAR....

"Simplesmente posso esperar
Aqui por você, uma eternidade
Uma tarde inteira
Simplesmente posso encontrar
Qualquer distração, ruas da cidade
Restos de uma feira
Tomo um atalho no lago
Só pra te perder
Enquanto olho os aviões
Nada tremeu no ar
Não vi nem um sinal
Mesmo assim eu posso esperar
Simplesmente posso esquecer
Da guerra ou da eternidade, uma tarde inteira
Calmamente posso contar
As nuvens no céu
Rostos na vidraça, flores nessa praça
Ter sua consolação só pra conseguir
Leio manchetes por aí
Nada tremeu no ar
Não vi nem um sinal
Mesmo assim eu posso esperar
Até deixar o recado na tarde
Uma simples saudade
Que você vai sentir quanto sentar-se a mesa
Uma simples certeza
Que agora você que espera por mim..."

QUERO ENCONTRAR UM AMOR...

"Quero encontrar um amor
Daqueles que não batem na porta pra entrar
Aquele que não hesita
Em espantar a visita e quem me visitar
Seja um cordeiro e seja um leão
Um bicho do mato e de estimação
Que pode ser que me queira
Ou me faça dormir na esteira estendida no chão
Quero encontrar um amor
Misto de samba leve com heavy metal
Que ponha as unhas de fora
Mas no "H" da hora me venha total
Que tenha um ar diferente do meu
E seja um canal aberto pro céu
E sempre na geladeira
Um vinho de primeira
Roubado da adega de Deus..."
(Sérgio Sampaio)

PERDENDO O JUÍZO...

"Ando falando com as paredes
Vivendo a vida por tabela
Comendo na beira do prato
Tentando entender teu descaso
Me pendura no cabide,
Dorme com minha roupa...
Me tira do sério
envolve em mistérios...
To perdendo meu juizo
Já não quero mais essa arte
Pode levar teu estandarte
teu traje de amigo
Não é disso que preciso
Estou do lado do avêsso
Nem sei se me reconheço
Prefiro ficar sem assunto
Do que tentar chegar junto
Me perdendo em teu olhar
Mas estou certa que um dia
Voce vai me procurar e...
Na virada da gamela
Voce vai encontrar
Aquelas bobagens
Que eu chamava de amor..."
(Ana Lucia Camargo)

sábado, 15 de agosto de 2009

HÁ UM PÁSSARO AZUL NO MEU CORAÇÃO...

"Há um pássaro azul no meu coração que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro, não vou deixar ninguém ver-te.
Há um pássaro azul no meu coração que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia nunca saberão
que ele se encontra lá dentro.
Há um pássaro azul no meu coração que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido, queres arruinar-me?
Há um pássaro azul no meu coração que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite por vezes
quando todos estão a dormir.
Digo-lhe, eu sei que estás aí, por isso não estejas triste.
Depois, coloco-o de volta, mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo e dormimos juntos
assim com o nosso pacto secreto
e é bom o suficiente para fazer um homem chorar,
mas eu não choro, e tu?..."
( Charles Bukowski)

FAZ DE CONTA...

"Fazia de conta que ela era uma mulher azul
porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,
faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,
faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,
faz de conta que uma veia não se abrira
e faz de conta que que dela não estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate,
e que ela não estivesse pálida de morte
mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade,
precisava no meio do faz de conta
falar a verdade de pedra opaca
para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,
faz de conta que amava e era amada,
faz de conta que não precisava de morrer de saudade,
faz de conta que estava deitada
na palma transparente da mão de Deus,
faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo
pois viver afinal não passava
de se aproximar cada vez mais da morte,
faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade
quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam
e ela não sabia desfazer o fino fio frio,
faz de conta que era sábia bastante para desfazer
os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos,
faz de conta que tinha um cesto de pérolas
só para olhar a cor da lua pois ela era lunar,
faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados
surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão,
faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,
faz de conta que se descontraía o peito e a luz douradíssima e leve
a guiava por uma floresta de açudes
mudos e de tranqüilas mortalidades,
faz de conta que ela não era lunar,
faz de conta que ela não estava chorando por dentro..."
(Clarice Lispector)

QUANDO SE APROXIMAR O FIM...

"Quando não sobrar uma única réstia da imagem de quem foste,
apenas ficarão os contornos da sombra da tua passagem,
passagem tumultuosa de passo inconstante de mãos irrequietas,
de um olhar escondido no brilho dos olhos de terceiros…
Quando a tua ausência for presença,
tu serás sombra sem corpo,
serás apenas um pouco de algo que já foi muito,
serás apenas um resquício de um horizonte de promessas
que ficaram perdidas nas palavras colocadas à beira do prato,
misturadas com os restos de café de uma chávena vazia,
sepultadas na cinza de um mar de cigarros
a jazer num cinzeiro triste…
Quando se aproximar o fim haverá sempre motivos
para querer começar outra vez…"
(Luis Coutinho)

UMA SOLIDÃO FATAL...

"Não compreendo como querer o outro
possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio.
Não compreendo como querer o outro
possa pintar como saída de nossa solidão fatal.
Mentira: compreendo, sim.
Mesmo consciente de que nasci sozinho
do útero de minha mãe,
berrando de pavor para o mundo insano,
e que embarcarei sozinho
num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.
Cruzo esses dois portos gelados da solidão.
Esse espaço branco entre dois encontros
pode esmagar completamente uma pessoa.
Por isso eu acho que a gente se engana, às vezes.
Aparece uma pessoa qualquer e então
inventas uma coisa que na realidade não é.
E vais vivendo aquilo
porque não aguentas o fato de estar sozinho..."
(Caio Fernando Abreu)

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

MEU PLATÔNICO AMOR...

Fico ali, te observando sem que ninguém perceba,
ou talvez percebam, acho que não importa mais,
eu que sempre me importei tanto.
Fico a espreita, ansioso para cada novo movimento,
os olhares, as mãos, a boca,
as pálpebras em um conjunto tão ordenado,
e coreografado com maestria,
capaz de revolucionar tudo aqui dentro.
Fico parado, quieto, tentando descobrir em ti
a essência que me fascina e desconstrói.
Não sei me defender dessa ternura que cresce escondida,
e seqüestra meus sonhos, desejos e pensamentos.
Um dia desses, você chegou bem perto,
e senti seu cheiro, era seu mesmo, puro,
desprovido daquelas essências
que torna qualquer pessoa insuportável.
Sonhei com você essa noite,
sonhei que eu sentia seu cheiro,
aconchegado nos seus braços.
Chorei quando acordei, eu não queria acordar,
eu queria ficar ali, nos teus braços.
Ah! Eu tinha tanta coisa para te contar.
Por um momento eu não tive medo.
Quando acordei fiquei estático,
procurando alguma coisa que não estava,
nem esteve ou jamais estaria ali...

DEPOIS DO MEU ANIVERSÁRIO...

Meu aniversário passou e nem me dei conta disso.
Esses dias ásperos não me perdoaram
se quer aquele que deveria ser o meu dia.
Nenhum sentimento novo,
nenhuma euforia nova.
Ando fatigado, procurando fugir sempre,
e às vezes de súbito, quero sair correndo
de encontro ao breu das quatro paredes,
fechar os olhos e sonhar com o que poderia ser.
Tenho tido dias lindos nas raias do pensamento,
mas preciso abrir os olhos.
Mudei, ainda que pouco,
mas continuo cheio de planos
e nunca certo do que quero.
Continuo chorando nas madrugadas
acompanhado por Fernando Pessoa
e mergulhado nas cartas de Caio Fernando Abreu.
Continuo sozinho, mas gostando tanto de você,
e quando estou a andar nas ruas,
fico esperando que saia de alguma porta
ou que apareça em alguma janela.
Tenho te buscado em meus pensamentos.
Apesar do medo, da solidão e da impotência,
tenho revirado o sofrimento
e buscado nele a grandeza de existir.
Apesar de tudo,
meu coração não perde a esperança...

A ARTE E O SONHO...

Preciso ter as cenas se misturando na minha mente.
A arte é um esquivar-se a agir ou a viver,
é a expressão da emoção, distinta da vida.
O que eu não tenho,
ou não ouso,
ou não consigo,
posso possuí-lo em sonho,
e é com esse sonho que faço a minha arte.
Me dá, é certo, um prazer mais nobre que os da vida;
porém são nos sonhos,
que vivo sentimentos que na vida não sinto,
e conjugo formas que na vida não se encontram.
Vivo feliz, abdicando da personalidade pela imaginação,
e me deleito na contemplação das vidas alheias.
percorro sentimentos que nunca me atingiram,
passeio por gestos, angústias e amores
que nunca antes haviam se insinuado,
percorrendo labirintos de inusitados conflitos,
vivendo o espetáculo de todas as impressões...

SENTIMENTOS ABSURDOS...

"Os sentimentos que mais doem,
as emoções que mais pungem,
são os que são absurdos.
A ânsia de coisas impossíveis,
precisamente porque são impossíveis,
a saudade do que nunca houve,
o desejo do que poderia ter sido,
a mágoa de não ser outro,
a insatisfação da existência do mundo.
Todos esses meios tons da consciência da alma
criam em nós uma paisagem dolorida,
um eterno por do sol do que somos.
O sentirmo-nos se torna então
um campo deserto a escurecer.
Não sei se esses sentimentos
são uma loucura lenta do desconsolo,
se são reminiscências de qualquer outro mundo
em que houvéssemos estado,
reminiscências cruzadas e misturadas.
Sei que estes pensamentos da emoção
doem com raiva na alma.
A impossibilidade de nos figurar
uma coisa a que correspondam,
a impossibilidade de encontrar qualquer coisa
que substitua aquela a que se abraçam em visão,
tudo isso pesa como uma condenação
não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isso
é com certeza um desgosto da vida
e de todos os seus gestos,
um cansaço antessipado dos desejos
e de todos os seus modos,
um desgosto anonimo de todos os sentimentos.
Nestas horas de mágoa,
torna-se impossível, até em sonho,
ser amante, ser herói, ser feliz.
Se penso isto e olho,
para ver se a realidade me mata a sede,
vejo casas inexpressivas,
caras inexpressivas,
gestos inexpressivos.
Nada pareçe me dizer nada
e no fundo da minha alma, existe mágoa.
Adoramos a perfeição,
porque a não podemos ter;
repugna-la-íamos, se a tivéssemos.
O perfeito é o desumano,
porque o humano é imperfeito..."

NA DISTÂNCIA A GENTE ESQUECE...

"Não vou perguntar por que você voltou,
acho que nem mesmo você sabe,
e se eu perguntasse
você se sentiria obrigado a responder,
e respondendo daria uma explicação
que nem mesmo você sabe qual é.
Não há explicação, compreende?
Eu também não queria perguntar,
pensei que só no silêncio fosse possível
construir uma compreensão,
mas não é, sei que não é, você também sabe,
pelo menos por enquanto,
talvez não se tenha ainda atingido
o ponto em que o silêncio basta?
É preciso encher o vazio de palavras,
ainda que seja tudo incompreensão?
Só vou perguntar por que você se foi,
se sabia que haveria uma distância,
e que na distância a gente perde
ou esquece tudo aquilo que construiu junto.
E esquece sabendo que está esquecendo..."
(Caio Fernando de Abreu)

NÃO É PARANÓIA!

"Algumas vezes eu fiz muito mal
para pessoas que me amaram.
Não é paranóia não, é verdade.
Sou tão talvez neuroticamente individualista
que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos
sinto uma ameaça a essa individualidade,
fico imediatamente cheio de espinhos
e corto relacionamentos com a maior frieza,
às vezes firo, sou agressivo e tal.
É preciso acabar com esse medo
de ser tocado lá no fundo,
ou é preciso que alguém me toque
profundamente para acabar com isso."
(Caio Fernando Abreu)

DA TERNURA À SOLIDÃO...

"Não sei como me defender
dessa ternura que cresce escondido
e, de repente, salta para fora de mim,
querendo atingir todo mundo.
Tão inesperada quanto a vontade de ferir,
e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade.
Mas é mais frustrante.
Sempre encontro a quem magoar
com uma palavra ou um gesto.
Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos,
apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro.
Sempre o mesmo círculo vicioso:
da solidão nasce a ternura,
da ternura frustrada a agressão,
e da agressividade torna a surgir a solidão.
Todos os dias o ciclo se repete,
às vezes com mais rapidez, outras mais lentamente.
E eu me pergunto se viver não será essa
espécie de ciranda de sentimentos
que se sucedem e se sucedem
e deixam sempre sede no fim...”
(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A SIMPLICIDADE DA VIDA...

"Tudo o que é belo tende a ser simples.
A beleza anda de braços dados com a simplicidade.
Basta observar a lógica silenciosa que prevalece nos jardins.
Vida que se ocupa de ser só o que é.
Não há conflito nas bromélias,
não há angústia nas rosas,
nem ansiedades nos jasmins.
Cumprem o destino de florirem ao seu tempo
e de se despedirem do viço quando é chegada a hora.
Não querem outra coisa, senão a necessidade de cada instante.
Não há desperdício de forças,
não há dispersão de energias.
Tudo concorre para a realização do instante.
Acolhem a chuva que chega e dela extraem o essencial.
Recebem o sol e o vento, e morrem ao seu tempo.
Simplicidade é um conceito
que nos remete ao estado mais puro da realidade.
A semente é simples
porque não se perde na tentativa de ser outra coisa.
É o que é.
Não desperdiça seu tempo querendo ser flor antes da hora.
Cumpre o ritual de existir, compreendendo-se em cada etapa.
O muito querer nos deixa complexos demais.
O simples anda leve.
A simplicidade é uma forma de leveza.
Nas relações humanas ela faz a diferença.
O que cultiva a simplicidade
tem a facilidade de tornar leve o ambiente em que vive.
Não coloca sua atenção no que é acidental,
mas prende os olhos naquilo que verdadeiramente vale à pena.
Pessoas simples são aquelas
que se encantam com as coisas menores.
Sabem sorrir diante de presentes simbólicos
e sem muito valor material.
Eu gostaria de me livrar de meus pesos.
Queria ser mais leve, mais simples.
Querer uma coisa só de cada vez.
Abandonar os inúmeros projetos futuros
que me cegam para a necessidade do momento.
Não gostaria que a morte me surpreendesse
sem que eu tivesse alcançado a simplicidade.
Até para morrer os simples têm mais facilidade.
Sentem que chegou a hora,
se entregam ao último suspiro e se vão.
Tenho uma intuição de que quando eu simplificar a minha vida,
a felicidade chegará em minha casa,
quando eu menos esperar..."
(Padre Fábio de Melo)

PAPAGUEIOS

"Gosto de ouvir sentimentos, mais do que palavras...
Talvez porque meu coração seja mais sensível do que meus ouvidos,
talvez porque palavras, o vento leve e sentimentos
fiquem impregnados na alma, que nem perfume.
Vejo palavras como maquiagem, disfarce, às vezes exageradas,
superficiais, às vezes borradas, ilusória emoção.
Talvez porque eu seja uma escorpiana passional,
prefiro sentimentos sussurrados ao pé do ouvido...
Porque são tímidos, mas francos;
porque necessitam de coragem para serem verbalizados,
porque às vezes sangram, de tão sinceros.
Como tatuagens - permanentes, assumidos.
Com palavras constroem-se jogos -
com sentimentos, tecem-se rendas.
Gosto de brincar com palavras.
Mas não brinco com sentimentos.
Por trás das palavras tem alguém que pensa.
Por trás dos silêncios tem alguém que sente.
Às vezes leio e respondo.
Às vezes olho e me calo.
Quando respondo, estou pensando.
Quando silencio é porque estou refletindo
sôbre o alcance do que me falas.
Se falas por teu coração, te escuto.
Se falas por bocas alheias,
busco entender porque te escondes.
Palavras...apenas palavras.
Palavras, frutos da mente.
Quem pensa, mente.
Quem cala, sente..."
(Denise Rangel)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

É DIFÍCIL SER TRANPARENTE...

"As vezes fico me perguntando
porque é tão difícil ser transparente.
Costumamos acreditar que ser transparente
é simplesmente ser sincero.
Não enganar os outros.
Mas é muito mais que isso!
É ter coragem de se expor,
de ser frágil,
de chorar,
de falar.
Ser transparente é desnudar a alma,
é deixar cair as máscaras,
baixar as armas,
destruir os imensos muros
que insistimos tanto em nos empenhar para levantar.
Ser transparente é permitir
que toda a nossa doçura aflore, transborde...
Mas,infelizmente,quase sempre
a maioria de nós decide não correr esse risco.
Preferimos à dureza da razão à leveza
que exporia toda a fragilidade humana.
Sugiro que deixemos explodir toda a nossa doçura.
Que consigamos não prender o choro,
não conter a gargalhada,
não esconder tanto o nosso medo,
não desejar parecer tão invencíveis.
Que consigamos não tentar controlar tanto,
responder tanto,
competir tanto.
Que consigamos docemente:
Viver, sentir e amar..."

MAIS UM POUCO DE MIM...

Eu gosto do impossível,
tenho medo do provável,
dou risada do ridículo
e choro porque tenho vontade,
mas nem sempre tenho motivo...
Tenho um sorriso confiante
que as vezes não demonstra
o tanto de insegurança por detrás dele.
Sou inconstante,
talvez imprevisível...
Não gosto de rotina.
Eu amo de verdade
aqueles para quem digo isso,
e me irrito de forma inexplicável
quando não botam fé nas minhas palavras.
Nem sempre coloco em prática aquilo que acho certo...
São poucas as pessoas para que meu me explico...

LIBERDADE...

"Se a palavra me fere,
não sou eu que desmaio
- ela que perde o sentido.
Se um verbo me agride,
não revido: me esquivo.
Se quebram meu brinquedo, eu conserto.
Se me roubam o carro, compro outro.
Se furam minha bola, tenho mais.
Se acaba o vinho, tomo leite.
Se chove, danço na chuva.
Se faz sol, me bronzeio...
Para mim, tudo é motivo para viver.
Só quando me falta a liberdade
é que me sinto morto!"
(Edson Marques )

AMOR NÃO CONSUMADO...

Para mim e para você, escrevo que,
daqui de onde me encontro,
você está longe e perto,
e eu estou sozinho e não.
Do que sinto, aviso que é forte mas não é perigoso,
é como um grande lago sereno, eu sou o píer,
você é todo o resto, toda água, tudo o que há.
Você não me acharia covarde,
você não acharia nada:
você não me conhece.
Sou um vulto, um alguém,
você foi gentil comigo
como é com os garçons e os primos,
com os pedestres e com os turistas,
você foi o que sempre foi,
e eu não fui com você:
no terceiro minuto ao seu lado
eu já sabia que era irremediável,
e em vez de segurar sua mão
e reverter-lhe a pressa,
deixei que você fosse, eu fiquei.
Se eu lhe acompanhasse, rogaria por um beijo,
e de mãos dadas o nosso caminho seria compartilhado...
Mas eu sou mais um desses boçais que não falam,
que pensam demais antes do próximo passo,
e você é mais uma vítima de um amor não consumado...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

AMORES ETERNOS

"Eu acredito em amores eternos,
daqueles que acompanham a gente pela vida inteira,
como se tempo e amor se fundissem num só elemento,
tornando-se imutáveis, indestrutíveis.
Eu acredito em amores eternos,
daqueles que vão com você para qualquer lugar,
não importando o quão distante você esteja,
por que a pessoa amada reside em seu próprio coração.
em amores eternos e sublimes,
capazes de reconsiderar tudo,
com suavidade, ternura e perdão.
Acredito, sim, em amores para toda a vida e além da vida,
pois seria um tipo de amor unido à própria alma,
e sem alma a vida não tem razão...
Amores eternos existem sim e superam qualquer coisa,
mesmo quando ninguém mais acredita neles,
eles continuam sempre à espreita,
esperando apenas um olhar,
um retorno, uma reconciliação..."
(Augusto Branco)

A GENTE COMEÇA A AMAR...

“A gente começa a amar
Por simples curiosidade,
Por ter lido num olhar
Certa possibilidade.
E como, no fundo, a gente
Se quer muito bem.
Ama quem ama somente
Pelo gosto igual que tem.
Pelo amor de amar começa
A repartir dor por dor,
E se habitua depressa
A trocar frases de amor.
E, sem pensar, vai falando
De novo as que já falou,
E então continua amando
Só porque já começou.”
(Paul Geraldy)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A AFINIDADE

"A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.
É o mais independente.
Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma
a relação, o diálogo, a conversa,
o afeto no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.
É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo para o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.
Mas quando existe
não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante
e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim,
sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.
Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito
dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavras.
receber o que vem do outro
com aceitação anterior ao entendimento.
Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para,
nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.
Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar, ou, quando é falar,
jamais explicar: apenas afirmar.
Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.
Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças.
É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades
exercidas quanto das impossibilidade vividas.
Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou
sem lamentar o tempo de separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser,
cada vez mais a expressão do outro
sob a forma ampliada do eu individual aprimorado..."
(Arthur da Távola )

domingo, 2 de agosto de 2009

TENHO UM DRAGÃO QUE MORA COMIGO...

Não, isso não é verdade.
Não tenho nenhum dragão.
E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém.
Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço
- seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu.
Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser.
Eles são solitários, os dragões.
Quase tão solitários quanto eu me encontrei,
sozinho neste apartamento, depois de sua partida.
Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo,
alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado.
E digo ilusão porque, outro dia,
numa dessas manhãs áridas da ausência dele,
felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência),
pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor
da mesma forma que precisam da ilusão de Deus.
Da ilusão do amor
para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta;
da ilusão de Deus,
para não se perderem no caos da desordem sem nexo.
Os dragões não permanecem.
Os dragões são apenas a anunciação de si próprios.
Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam.
As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena.
Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem.
O aplauso seria insuportável para eles:
a confirmação de que sua inadequação
é compreendida e aceita e admirada,
e portanto - pelo avesso igual ao direito -
incompreendida, rejeitada, desprezada.
Os dragões não querem ser aceitos.
Eles fogem do paraíso,
esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos
- como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo
e prendê-lo para sempre junto a mim.
Os dragões não conhecem o paraíso,
onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega,
numa eterna monotonia de pacífica falsidade.
Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim.
Mas respiro fundo,
esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim.
Para manter-me vivo,
saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas
ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento
e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente,
tornar-me então outra vez capaz de afirmar,
como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo.
E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim,
seria totalmente verdadeira,
mesmo sendo completamente mentira.
Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço
que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria,
tarde da noite, sozinho neste apartamento
no meio de uma cidade escassa de dragões,
repito e repito este meu confuso aprendizado
para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos
do sereno velho-eu-mesmo:- Dorme, só existe o sonho.
Dorme, meu filho.
Que seja doce.
Não, isso também não é verdade..."
(Caio Fernado Abreu)

QUE SEJA DOCE..

"Então, que seja doce.
Repito todas as manhãs,
ao abrir as janelas para deixar entrar o sol
ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce.
Quando há sol, e esse sol bate
na minha cara amassada do sono ou da insônia,
contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo;
repito sete vezes para dar sorte:
que seja doce que seja doce que seja doce
e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce,
talvez não saiba responder.
Tudo é tão vago como se fosse nada..."
(Caio Fernando Abreu)

AS NOSSAS RELAÇÕES

"Com o tempo, nos tornamos pessoas maduras,
aprendemos a lidar com as nossas perdas
e já não temos tantas ilusões.
Sabemos que não iremos encontrar uma pessoa
que, sozinha, conseguirá corresponder
a todas as nossas expectativas sexuais, afetivas e intelectuais.
Os que não se conformam com isso
adotam o rodízio e aproveitam a vida.
Que bom, que maravilha, então deveriam sofrer menos, não?
O problema é que ninguém é tão maduro
a ponto de abrir mão do que lhe restou de inocência.
Ainda dói trocar o romantismo pelo ceticismo,
ainda guardamos resquícios dos contos de fada.
Mesmo a vida lá fora flertando descaradamente conosco,
nos seduzindo com propostas tipo "leve dois, pague um",
também nos parece tentadora a idéia de encontrar alguém
que acalme nossa histeria e nos faça interromper as buscas.
Não há nada de errado em curtir a mansidão de um relacionamento
que já não é apaixonante, mas que oferece em troca
a benção da intimidade e do silêncio compartilhado,
sem ninguém mais precisar se preocupar
em mentir ou dizer a verdade.
Quando se está há muitos anos com a mesma pessoa,
há grande chance de ela conhecer bem você,
já não é preciso ficar explicando a todo instante
suas contradições, seus motivos, seus desejos.
Economiza-se muito em palavras, os gestos falam por si.
Quer coisa melhor do que poder ficar quieto ao lado de alguém,
sem que nenhum dos dois se atrapalhe com isso?
Longas relações conseguem atravessar a fronteira do estranhamento,
um vira pátria do outro.
Amizade com sexo também é um jeito legítimo de se relacionar,
mesmo não sendo bem encarado pelos caçadores de emoções.
Não é pela ansiedade que se mede a grandeza de um sentimento.
Sentar, ambos, de frente pra lua, havendo lua,
ou de frente pra chuva, havendo chuva,
e juntos fazerem um brinde com as taças,
contenham elas vinho ou café, a isso chama-se trégua.
Uma relação calma entre duas pessoas que,
sem se preocuparem em ser modernos ou eternos,
fizeram um do outro seu lugar de repouso.
Preguiça de voltar à ativa? Muitas vezes, é.
Mas também, vá saber, pode ser amor..."
(Martha Medeiros)

A TODOS...

"A todos trato muito bem
sou cordial,
educado,
quase sensato,
mas nada me dá mais prazer
do que ser persona non grata
expulso do paraiso
um homem sem juízo,
que não se comove com nada
cruel e refinado
que não merece ir pro céu,
uma vilão de novela,
mas belo e até mesmo culto e estranho,
com tantos amigos e amado,
bem vestido e respeitado
aqui entre nós
melhor que ser bonzinho
é não poder ser imitado..."

GOSTO DE PENSAR ASSIM...

"Gosto de pensar assim:
se a gente faz o que manda o coração,
lá na frente, tudo se explica.
Por isso, faço a minha sorte.
Sou fiel ao que sinto.
Aceito feliz quem eu sou.
Não acho graça em quem não acha graça.
Acho chato quem não se contradiz.
Às vezes desejo mal.
Sou humano.
Sou quase normal.
Não ligo se gostarem de mim em partes.
Mas desejo que eu me aceite por inteiro.
Não sou perfeito, não sou previsível.
Sou um louco.
Admiro grandes qualidades.
Mas gosto mesmo dos pequenos defeitos.
São eles que nos fazem grande.
Que nos fazem fortes.
Que nos fazem acordar.
Acho bonito quem tem orgulho de ser gente.
Porque não é nada fácil, eu sei.
Por isso continuo guerreiro.
Continuo na lua.
Continuo na luta.
No meio do caos que anda o mundo,
aceitar é ser feliz..."

ALGUMAS SENSAÇÕES...

"Meus olhos pesam e meu coração já bate fraco.
De tanto que bateu a vida inteira.
De tanto chorar amor e fracassos.
De tanto chorar pelo leite derramado
decido que se entender é complicado demais.
O quente queima e o frio é gelado demais,
vai o morno mesmo que não causa sensação alguma
e no momento eu não tenho sequer condições de sentir algo.
Sentir dá trabalho
e trabalho acarreta uma série de responsabilidades.
Responsabilidade é chato demais
e não aquece seus pés nos dias frios.
Enfim, opto por decidir somente pelo necessário.
Pelo que realmente vai fazer alguma diferença em minha vida
e desisto de tentar equilibrar-me,
isso é para artista circense e eu nem gosto tanto de circo.
Melhor deixar assim...
Uma porta de saída e uma de entrada.
O que vale fica e o que não vale que valesse.
Nada de culpa ou de noites mal dormidas,
nada de coração na boca em de frio na barriga.
Certas coisas não se explicam.
Não existem palavras que as descrevam ou soluções que as resolvam.
Sentimentos, gestos, sonhos e sorrisos.
A alma entende e a boca cala..."

UM POUCO DE MIM...

"Não, não ofereço perigo algum:
sou quieto como folha de outono
esquecida entre as páginas de um livro,
definido e claro como o jarro
com a bacia de ágata no canto do quarto...
se tomada com cuidado, verto água límpida
sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto,
mas se tocada por dedos bruscos
num segundo me estilhaço em cacos,
me esfarelo em poeira dourada.
Tenho pensado se não guardarei
indisfarçáveis remendos das muitas quedas,
dos muitos toques, embora sempre os tenha evitado
aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes
para despertar a suavidade alheia,
e mesmo assim insisto.
Meus gestos e palavras são magrinhos como eu,
e tão morenos que, esboçados à sombra,
mal se destacam do escuro,
quase imperceptível me movo,
meus passos são inaudíveis
feito pisasse sempre sobre tapetes,
impressentido, mãos tão leves que uma carícia minha,
se porventura a fizesse, seria mais branda
que a brisa da tardezinha..."
(Caio Fernando Abreu)