quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

SAUDADES NOSSAS...

"Tenho saudades tuas.
Do tempo em que éramos dois
mas éramos um só.
Do tempo em que o primeiro telefonema do dia
era para ti.
Do tempo em que éramos um do outro
e gostávamos disso.
Do tempo em que os dias passavam devagar
mas não importava
porque à noite estávamos juntos.
Do tempo em que os teus pés gelados
procuravam os meus debaixo dos lençóis.
Do tempo em que falávamos com o olhar.
Do tempo em que o teu toque me arrepiava.
Do tempo em que os teus abraços
eram remédio para tudo.
Do tempo em que o silêncio não era uma arma.
Do tempo em que as discussões
eram pretexto para nos amarmos.
Do tempo em que me sentia amado.
Do tempo em que me fazias feliz e eu a ti.
Do tempo em que éramos felizes mas não sabíamos.
Tenho saudades nossas."
(Pedro Rapoula)

CONFISSÃO

"Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém.
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios.
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas, em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!"
(Mário Quintana)

ANTES QUE VENHAM VENTOS...

"Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor — este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.
Uma cidade, sim. Edificada nas nuvens,
não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.
Ventos do mundo sopram; quando sopram,
ai, vão varrendo, vão, vão carregando
e desfazendo tudo o que de humano
existe erguido e porventura grande,
mas frágil, mas finito como as dores,
porque ainda não ficando — qual bandeira
feita de sangue, sonho, barro e cântico —
no próprio coração da eternidade.
Pois de cântico e barro, sonho e sangue,
faze de teu amor uma cidade,
agora, enquanto é tempo.
Uma cidade onde possas cantar
quando o teu peito parecer,
a ti mesmo, ermo de cânticos;
onde possas brincar sempre que as praças
que percorrias, dono de inocências,
já se mostrarem murchas, de gangorras
recobertas de musgo, ou quando as relvas
da vida, outrora suaves a teus pés,
brandas e verdes já não se vergarem
à brisa das manhãs.
Uma cidade onde possas achar,
rútila e doce, a aurora
que na treva dissipaste;
onde possas andar como uma criança
indiferente a rumos: os caminhos,
gêmeos todos ali, te levarão
a uma aventura só — macia, mansa —
e hás de ser sempre um homem caminhando
ao encontro da amada, a já bem-vinda
mas, porque amada, segue a cada instante
chegando — como noiva para as bodas.
Dono do amor, és servo. Pois é dele
que o teu destino flui, doce de mando:
A menos que este amor, conquanto grande,
seja incompleto. Falte-lhe talvez
um espaço, em teu chão, para cravar
os fundos alicerces da cidade.
Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fardo: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.
Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.
É tempo. Faze tua cidade eterna,
e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor — este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida."
(Thiago de Mello)

O AMOR É MUNDANO OU É SANTO...

"O amor é mundano ou é santo.
O mundano é o que não atravessa
nenhuma tempestade para se definir santo.
É a brisa dos costumes.
Afirmação alinhada à concordância.
Não teve nenhuma crise,
nenhum estremecimento sério,
para testar suas contradições.
Sem incoerência, não há amor santo.
O amor é uma incoerência coerente
somente aos dois envolvidos.
No santo, quem ama
está terrivelmente sozinho,
contra a opinião da maioria."
(Fabrício Carpinejar)

SINTO A TUA FALTA...

"Sinto a tua falta.
E nem o dourado do sol nestes dias de céu azul,
nem o calor afrodisíaco das noites de Agosto,
nem tão pouco a certeza
de que o verão vai chegar ao fim,
ajudam a esquecer a falta que me fazes.
Este é o dia em que as certezas
se transformam em dúvidas,
em que os risos se convertem em lamentos,
em que a constatação de te ter perdido
faz com que o inverno chegue muito mais cedo.
Tenho tantas saudades tuas.
Do sal no teu corpo, do sol nos teus olhos,
das estrelas no teu sorriso.
Da forma como te entregavas.
E não sei tão pouco se ainda te amo
ou se isto é apenas a saudade
dos dias mais felizes da minha vida,
os que passei ao teu lado,
nesses verões em que o mar
era o nosso denominador comum
e o alentejo era a nossa casa."
(Pedro Rapoula)

PINGOS DE CHUVA...

"A chuva molha a vidraça.
São tristes os pingos escorrendo
devagar na face do vidro.
Tristes? Antes eram lindos.
Antes ficávamos junto à vidraça
e nos amávamos enquanto os pingos corriam.
Mas, te peço, não fique pensando
que eu estou aqui sofrendo
-você não ficaria feliz-
Não sei nem porque te digo isso.
E o barulho no telhado, lembra?
Você costumava dizer
que era uma canção de amor.
Mas, te peço, não fique pensando
que eu estou aqui sofrendo
-você não ficaria feliz-.
Não sei nem porque vim aqui.
Apenas vi a porta aberta,
a chuva lá fora e corri para lhe ver.
Mas você ainda não saiu de seu túmulo de dor.
Voltarei novamente.
Sei que um dia sairás daí.
E, te peço... não pense que estou chorando,
você não ficaria feliz.
São apenas pingos da chuva
que me descem pelo rosto."
(Dimas Lucena)

EU QUIS TANTO SER A SUA PAZ...

"Eu quis tanto ser a tua paz,
quis tanto que você fosse o meu encontro.
Quis tanto dar, tanto receber.
Quis precisar, sem exigências.
E sem solicitações,
aceitar o que me era dado.
Sem ir além, compreende?
Não queria pedir mais do que você tinha,
assim como eu não daria mais do que dispunha,
por limitação humana.
Mas o que tinha, era seu..."
(Caio Fernando Abreu)

SE NÃO HOUVESSE MONTANHAS...

"Se não houvesse montanhas,
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
E os braços colhessem redes!

Se as noites e os dias passassem
Como nuvens sem cadeias
E os instantes da memória
fossem ventos nas areias!

Se não houvesse saudade,
Solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse,
Além de breve, perdida!

Eu tinha um cavalo de asas
Que morreu sem ter vivido.
E em labirintos se movem
Os fantasmas que persigo..."

(Cecília Meireles)

COM O AMOR...

Andar na fina e macia areia
Que conta pacientemente o tempo
E escorre suave sobre as horas
Eu ainda caminho
E corro pelos montes
A antiga casa feita de areia se desfez
Os antigos escritos se perderam
Eu também quase me perdi
Na fina e macia areia dos desertos
Por noites e dias esperar
Que o movimento das ondas
reflitam minhas lágrimas
Que a pele marcada cicatrize
E que o tempo volte a transcorrer suave
Acreditar que nada acontece por acaso
E que nem mesmo o acaso permanece acaso
Na fina e macia areia eu ainda caminho
Agora de braços dado com o tempo
Com o amor..."
(Espatódea)

OTÁRIO!

"És um autêntico otário,
é a única coisa que me apetece escrever sobre ti!
Não dá para escrever um texto bonito sobre ti,
quase que nem dá para escrever sobre ti,
a palavra é só uma e é otário!
Que tormento que foi passar tanto tempo
a adorar-te e a idealizar-te
como a pessoa fantástica que não és.
A minha criatividade foi fantástica
ao ponto de te fazer um extreme make over.
De besta passaste a bestial, de traidor
passaste a ser apenas indeciso e confuso,
de despreocupado passaste a ser distraído,
de divertido passaste a ser o rei da festa.
A minha criatividade e paixão desmesuradas
ampliaram a tua alma de rato para alma de deus.
Acontece que a lupa com que te ampliei estragou-se,
de tanto tentar modificar a realidade cansou-se,
partiu-se em cacos e foi-se embora.
Agora, sem lupa, não há criatividade que resista,
não há paixão que sobre.
Onde é que está o teu encanto?
Onde é que está a tua diversão?
Onde é que está o mundo
que eu inventei à tua volta?
Não está, não vejo nada...
ou melhor, vejo, vejo um otário."
(Susana F.)

BOLAS DE SABÃO

"As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as coisas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente..."
(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

POEMA FEMININO

"Que mulher nunca teve
Um sutiã meio furado,
Um primo meio tarado,
Ou um amigo meio veado?

Que mulher nunca tomou
Um fora de querer sumir,
Um porre de cair
Ou um lexotan para dormir?

Que mulher nunca sonhou
Com a sogra morta, estendida,
Em ser muito feliz na vida
Ou com uma lipo na barriga?

Que mulher nunca pensou
Em dar fim numa panela,
Jogar os filhos pela janela
Ou que a culpa era toda dela?

Que mulher nunca penou
Para ter a perna depilada,
Para aturar uma empregada
Ou para trabalhar menstruada?

Que mulher nunca comeu
Uma caixa de Smarties, por ansiedade,
Uma alface, no almoço, por vaidade
Ou, um canalha por saudade?

Que mulher nunca apertou
O pé no sapato para caber,
A barriga para emagrecer
Ou um ursinho para não enlouquecer

Que mulher nunca jurou
Que não estava ao telefone,
Que não pensa em silicone
Que "dele" não lembra nem o nome?"

(Cláudia Ribeiro)

DÓI...

"Dói cada vez que te vais embora
só porque sim...
Dói cada vez que sei que não voltas
porque não queres
e dói quando chegas e eu sei
que vais ficar pouco tempo!
Vais-te sempre embora ...sempre...
e o que fica sou eu,
o meu celular sem mensagens
e a lista de rapazes a quem posso ligar
e não ligo!
Posso ligar àquele que me adora
e que mima todos os dias,
posso ligar àquele que tem namorada
mas que me socorre a cada segundo,
posso ligar àquele
que nunca deixou de gostar de mim,
posso ligar àquele que me fazia rir...
Posso, mas não consigo...
Quero ligar-te a ti,
quero que sejas tu a salvar-me
do buraco onde me deixaste...
Eu sei que não vens,
eu sei que vamos gritar, discutir
e magoarmo-nos cada vez com mais força...
Mas pior que isso é que descobri
que não gostas de mim...
Por isso e à nossa boa e educada maneira
te digo ...Vai para o caralho!!!"
(Susana F.)

A CRIANÇA QUE EU FUI...

"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim."

(Fernando Pessoa)

PORQUE SOU TÃO INFELIZ?

"Porque sou tão infeliz?
Porque sou o que não devo ser.
Porque metade de mim
não está irmanada
com a outra metade.
A conquista de uma
é a derrota da outra..."
(Fernando Pessoa)

ADEUS...

"Já gastamos as palavras pela rua,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis...
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza de que todas as coisas
estremeciam só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse:
as palavras estão gastas.
Adeus..."
(Eugénio de Andrade)

EXPLICAÇÃO DA ETERNIDADE

"Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo,
o amor transforma-se em tempo,
a dor transforma-se em tempo...
Os assuntos que julgamos
mais profundos, mais impossíveis,
mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
Por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.
Os instantes dos teus olhos parados sobre mim
eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
Foste eterna até ao fim."
(José Luís Peixoto)

O ANO PASSADO

"O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.
As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.
Embora sepultos,
os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.
E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar o ano passado..."
(Carlos Drummond de Andrade)

UM BARCO ABANDONADO

"A minha vida é um barco abandonado infiel,
No ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas peregrino
Frescor de afastamento,
No divino amplexo da manhã,
Puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada ilha..."
(Fernando Pessoa)

A REGRA DE TRÊS

"Decidi viver
com os olhos fechados para o interior
e morrer sem abri-los.
A vida aí está, passa diante de nós
e é preciso acompanhá-la .
Decidi ignorar a razão última dos seres,
se é que há alguma.
Apenas estender a mão,
tocar um semelhante, um ente amado.
Erguer os olhos
-e erguia-os depois de tê-los demorado
por um instante no chão-
e ver por perto um autêntico semelhante meu,
a quem tivesse reconhecido pelo olfato,
como fazem os cães.
E saber que sou eu, pouco mais ou menos,
quem acaricia, quem deseja, quem olha.
Qual é a última vez?
Cada vez é sempre a primeira e a última..."
(Antonio Gala)

domingo, 27 de dezembro de 2009

O TEMPO DENTRO DO ESPELHO

"O tempo não existe, meu amor
O tempo é nada mais que uma invenção
de quem tem medo de ficar eterno.
De quem não sabe que nada se acaba,
que tudo o que se vive permanece
cinza de amor ardendo na memória.
O tempo passa? Ai, quem me dera!
O tempo fica dentro de mim,
cantando fica ou me queimando,
mas sou eu quem canto
eu que me queimo,
o tempo nada faz sem mim
que lhe permito a minha vida.
De mim depende, sou sua matéria,
esterco e flor do chão da minha mente,
o tempo é o meu pecado original..."
(Thiago de Mello)

CONSCIÊNCIA CÓSMICA

"Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir , se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo..."
(João Guimarães Rosa)

MEMORANDO

"Então me concentrei dizendo:
Guarda-a na memória essa paisagem
que não se repetirá na face da terra
com as mesmas indefinidas cores.
E esse vulto que teus olhos não verão de novo.
passar com idênticos movimentos rítmicos.
E essa voz que te saudou do outro lado do oceano
assim com um fugidio marulho das ondas.
A paisagem desapareceu entre as cinzas do informe.
O vulto não regressou em sucedimento a si próprio.
A voz perdeu o timbre no exaurir da mensagem.
Mas por milagre se conservam tangíveis
dentro de um vago mundo sem dimensões
a paisagem o vulto a voz
que de longe em longe reencontro.
Aquela paisagem ninguém viu como eu.
Aquele vulto não foi captado senão por mim.
Aquela voz me tocou e não a outrem.
Frágil tesouro da memória
- antes que a noite desarme
por algum tempo ainda resguardado..."
(Henriqueta Lisboa)

FRAGMENTOS DO VALE DAS SOMBRAS

"Onde houver fogo seremos gasolina,
E a ausência de voz em todo grito.
Seremos a verdade por trás de todo mito,
E a distância do vale à colina.
Seremos a paz de quem lucra com a guerra,
O preço da bala e o custo da vida,
O acerto daquele que sempre erra,
A crença daquilo que se duvida,
E do caminho o passo primeiro.
Mas seremos apenas desperdício e impaciência,
A parte mais humana de toda a violência,
E o resto de tudo aquilo
que não se faz inteiro..."
(Daniel M. Laks)

AMOR FEINHO...

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado,
é igual fé, não teologa mais.
Duro de forte,
o amor feinho é magro,
doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores
ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom
porque não fica velho.
Cuida do essencial;
o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho..."
(Adélia Prado)

DUAS OU TRES COISAS QUE EU SEI DELA...

"São duas ou três coisas que eu sei dela,
e nada mais além de seu perfume.
Sei que nas noites ermas ela assume
esse ar de quem flutua na janela,
como o duende fugaz que em si resume
um tempo que a ampulheta não revela:
o tempo além do tempo que só nela
navega mais que o peixe no cardume.
Sei que ela traz nos olhos esse lume
de quem sofreu e a dor tornou mais bela,
pois o naufrágio lhe infundiu aquela
vertigem que do alfanje é o próprio gume.
Sei que ela vive no halo de uma vela,
e queima, sem consolo, em minha cela..."
(Ivan Junqueira)

A VOZ

"Cada dia o silêncio do quarto isolado
se recolhe no leve marulho dos gestos
como o ar. Cada dia a estreita janela
se abre imóvel ao ar que se cala.
A voz rouca e doce
não volta no fresco silêncio.
O ar imóvel se abre ao alento
de quem vai falar e se cala.
É assim todo dia. E a voz é a mesma,
mas não rompe o silêncio, rouca e igual
como na sempre imobilidade da memória.
A clara janela acompanha
com sua breve batida o antigo sossego.
Cada gesto percute o antigo sossego.
Se soasse a voz, voltariam as dores.
Voltariam os gestos no ar espantado
e palavras, palavras à voz submissa.
Se essa voz ressoasse,
até a breve batida do silêncio que dura
seria uma dor.
Voltariam os gestos das dores inúteis,
percutindo nas coisas o estrondo do tempo.
Mas a voz não retorna, e o sussurro distante
não encrespa a memória.
Imóvel a luz relampeja serena.
E o silêncio se cala
para sempre, submisso,
na imagem antiga..."
(Cesare Pavese)

NÃO POSSO ADIAR O AMOR...

Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas.
Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio...
Não posso adiar.
Ainda que a noite pese séculos
Sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século
A minha vida, nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação..."
(António Ramos Rosa)

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM...

"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."

(Alexandre O'Neill)

SE EU PUDESSE TRINCAR A TERRA TODA...

"Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se,
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
pensar como quem anda,
E quando se vai morrer,
lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo
e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja..."
(Alberto Caeiro/Fernando Pessoa)

LIMITO-ME A SENTIR...

O meu limite já não és tu,
nem ele, nem eles, sou eu.
O meu limite é viver,
sentir, voar e correr.
O meu limite, é percorrer
um mundo que é meu.
A velocidade aumenta,
o vento fica frio e demente,
o rosto gela, o coração aperta,
aumenta o respirar,
vim, voltei, cheguei,
regressei felizmente,
agora é a esta liberdade
a quem me vou entregar.
Cuspi sangue, mas não sou mais
o corpo dissecado,
deixei papéis, canetas, lápis, mochilas,
sem nada acordei.
Perdi tudo, assim o quis,
regressei livre, como havia sonhado.
A ti, conquistei, a vocês conquistei,
a eles perdi.
O mundo era meu, o nada era meu,
continuei a correr,
que bom este sabor fresco de liberdade,
é tão bom voar,
que bom que é marchar além...
quem bom que é saber me amar.
Mais, quero mais velocidade,
quero ir ainda mais além,
regressei do tudo e agora sou o nada,
que bom é, mais ninguém me tem...
Limitei-me a crescer,
limitei-me a saber sorrir,
Limitei-me a entregar,
limitei-me a tentar,
limitei-me a sonhar,
agora sou pedra, sou flor,
agora limito-me a regressar,
agora?
Ainda consigo, venci:
-Limito-me a sentir...
...regressei!"
(N. Impossible Prince)

A MEU FAVOR...

"A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio
Algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça..."
(Alexandre O'Neill)

O QUE É QUE EU FAÇO?

"O que é que eu faço?
Se vivo sem ti.
Olho pela janela,
Deslumbro-me na tela,
Recordo-me de ti.
O que posso eu fazer?
A não ser recordar…
Vislumbro aquele vale,
era o nosso vale,
Pomares de cetim…
Onde ganho fé?
Se estou na escuridão,
Perco-me nos montes,
danço a melodia,
Sem ti, na solidão…
O que posso eu fazer?
Se tu não estás aqui.
Se preferiste o escuro,
o caminho bravio,
Já não estás em mim…
O que posso eu fazer?
Se não o meu caminho traçar…
O que posso eu sentir?
Se de ti não me sei despedir…
Olhos, horizontes,
Lábios, rochas de mel,
Corpo de fera,
Alma de papel…
O que posso eu fazer?
A não ser te esquecer..."
(N.Impossible Prince)

PORQUE OS OUTROS SE CALAM...

"Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não..."
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

O AMOR NÃO VIVE MAIS AQUI...

"O amor não estaciona mais aqui.
O fogo não acende mais neste pântano.
O mar não encosta mais aqui,
O amor não vive mais ali.
Abandonei o nosso forte,
Perdeu-se a chama do nosso lado,
Não é matemático a soma à morte,
Muito menos, a perda do pecado.
Há terramotos que derrubam,
O amor não vive, não dança mais aqui.
Há chuvas e ventos que levam,
grãos de areia que não são daqui.
A lágrima deixou de cair,
A fonte envelheceu e secou.
O amor não dança mais, não sabe sorrir.
O amor, o fogo, o mar, foram o que ele matou.
(N. Impossible Prince)

DE TANTO OLHAR O SOL...

"De tanto olhar o sol,
queimei os olhos,
De tanto amar a vida enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura.
À procura
Da luz e do juízo que perdi..."
(Miguel Torga)

É URGENTE O AMOR...

"É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros
e a luz impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente permanecer..."
(Eugénio de Andrade)

SOU UM EVADIDO

"Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer."

(Fernando Pessoa)

QUASE UM POEMA DE AMOR...

Há muito tempo já que não escrevo
Um poema de amor...
E é o que eu sei fazer
Com mais delicadeza!
A nossa natureza, lusitana,
Tem essa humana
Graça feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental e baça bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado o coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo
Um poema de amor..."
(Miguel Torga)

POR QUE ME FALAS NESSE IDIOMA?

"Por que me falas nesse idioma?
perguntei-lhe, sonhando.
Em qualquer língua se entende essa palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.
Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira essa música incessante.
Morte, morte.
Levamos toda a vida morrendo em surdina.
No trabalho, no amor, acordados, em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que o seu fogo veemente nos consuma
sem a consumir..."
(Cecília Meireles)

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO...

"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco..."
(Mário Cesariny)

À FERNANDO PESSOA

"Me comove ver escritos por outras pessoas,
todos os sentimentos que experimento e tento,
recursivamente, organizar dentro de mim,
na tentativa frustrante de escrevê-los.
Como pode?... São meus sentimentos e outros,
que nem ousaram saber da minha existência,
saem por aí, a expor minhas mais recônditas angústias,
alegrias, dúvidas, esperanças....
Não é possível que estivessem falando de si mesmos!
Falavam de mim. Sim, falavam de mim!
Ou, melhor, falavam por mim, choravam por mim,
riam por mim, sofriam por mim.
E ainda assim tantos sentires me sobraram,
que creio haver uma inesgotável fonte de sentimentos,
que nunca cessará, e sempre haverá alguém que,
inadvertidamente, beberá dela, e entrará neste mundo
de sensações que não pode ser descrito,
mas sim, apenas sentido e vivido.
Resta a mim, a repetida tarefa de dizer, dizer,
e dizer o que sinto através das palavras que leio.
Palavras de outras pessoas. Sim !
Outras pessoas que ousaram escrever os meus sentimentos
sem que eu as autorizasse para que, a posteriori,
eu lesse e indagasse silenciosamente:
-quando eu escrevi isso?-.
Palavras dessas outras pessoas que um dia, antes de mim,
ousaram beber dessa fonte e por ela foram também tragadas,
mas deixaram para mim, ecos de seus sentires,
como uma prova da comunhão que paira sobre toda a humanidade,
mas que apenas alguns poucos podem identificá-la.
Agradeço a todos por traduzirem aquilo que um dia eu sentiria
e, muitas vezes, não entenderia em mim mesmo..."
(Helena)

A VIDA QUE A GENTE TEM...

"Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.


Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar."

(Fernando Pessoa)

ESPERANÇA

"Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas,
Todas as buzinas, Todos os reco-recos tocarem
Atira-se e...
—Ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente
incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho,
para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA..."
(Mário Quintana)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

EU TE ESQUECI...

"Eu te esqueci.
Não assim como se deve esquecer alguém.
Eu te esqueci por fora.
Por dentro você ainda permanece, e me persegue.
Você está em mim, mas confesso que é defunto.
Só desperta no limiar da minha saudade.
Como naquela tarde, em que eu achei a sua foto.
Você lá, sentado, com o seu sorriso
que só você sabe sorrir.
Olhando pro lado, meio tímido, meio lindo.
E totalmente meu. Ah, passado....
E então eu senti que eu ainda te tenho aqui.
Bem pouco, é verdade, mas real.
E justamente naquela beiradinha que doía.
A beiradinha mais sensível desse coração que era seu.
Mas então você bateu a porta,
e se levou embora de mim.
Esquecendo esse pedacinho seu,
que ainda faz doer tanto a minha beiradinha.
Nem cogito a possibilidade de você voltar pra buscá-la,
é verdade.
Dispenso o resgate pra evitar o desgaste,
e as vezes é até bom que ela esteja aqui.
É o meu restinho de você, um souvenir.
É o seu pedacinho em mim.
Tudo por causa da foto.
O seu contraste branco e preto,
me fez suspirar por um minuto,
e nesse minuto eu quis fazer
seu pedacinho virar aquele todo de novo.
Mas foi também culpa da sua foto que eu não deixei.
Porque junto com o seu contraste
e o seu sorriso que me dói,
havia também o seu olhar.
Esse seu olhar de olhar pro lado,
para evitar indagações.
Para dizer educadamente: “não, eu não amo você”.
Por isso eu escondi a foto de novo,
e me tornei pedacinho outra vez.
Beiradinha que dói.
E é assim que eu sigo hoje,
fingindo que você não existe,
e mentindo que é só pedacinho..."
(Juliana Baeta)

ORAÇÃO PAGÃ

"Já faz tempo que eu me perdi em você,
e é desde então que eu ostento este semblante obtuso,
vago e sereno, comum a essa gente apaixonada.
E eu diria, a essa gente louca, sem razão, sem voz,
sem amor próprio, sem boas intenções, sem noção,
se hoje eu também não fizesse parte disso,
ou pior ainda, pra usar minha paixão superlativa,
se eu não reproduzisse o protótipo perfeito dessa gente toda.
Minha religião mudou quando eu criei um deus
só pra te acompanhar e te proteger,
e livrar você de todo mal,
e foi então que eu me vendi a ele.
Gastei toda a minha alma assim,
me tornando uma pagã ao contrário, uma atéia desviada,
para incluir você nas minhas orações inventadas,
e então eu creio...
Eu que nem sei rezar, me tornei a mais cristã das mulheres,
o mais santo dos mortos, e que o diabo me perdoe,
mas hoje eu quero o céu, só pra te dedicar o paraíso
e te adorar em um altar sagrado.
(E eu quero passar todos os dias santos fazendo amor com você,
mergulhada no seu sexo, instalada entre as suas pernas
e lambendo todas suas veias e os seus cabelos,
até você se derramar na minha boca.
Amém)."
(Juliana Baeta)

AS METADES

"Por todas as metades que há na vida, eu choro.
Por seus desencontros,
Pelos minutos de atraso no ponto do ônibus,
Pelo avião que se perde,
Pelo beijo que não se rouba...
Pelo dia, que caminha solitário ao encontro da noite
E em seu colo jamais desperta.
Pelo sol, cuja luz ilumina a lua
Sem poder com ela compartilhar os seus efeitos...
Lamento tanto pelo deserto árido
Que não encontra seu oásis
E, sedento, se espalha em pranto.
Eu choro a solidão do mar...
Gigante em buscas e perdas constantes!
Mas de todas as metades desencontradas,
Eu choro mais pelas almas gêmeas que, desgarradas,
Dobraram esquinas em sentidos opostos...
Lamento a palavra não dita, o grito não dado!
A música não ouvida,
O poema não recitado.
Minha dor vai se espalhando
E toma minhas mãos…
As mãos, as mesmas mãos que jamais te tocaram.
As mãos que acenaram após a partida,
E que juntaram com cuidado
A areia que esculpiu tuas pegadas...
Toma conta de meus olhos
Que, cheios d’água,
Perderam os teus…
E numa questão de segundos
Só enxergaram a estrada vazia.
Perco-me enquanto busco.
Já não me reconheço.
Já não encontro o caminho.
Já não sonho.
Apenas espero que me resgates!
Não demores, te espero há tantas vidas..."
(Aila Magalhães)

OS QUE NUNCA PARTEM...

"Eu me lembro que quando era muito jovem,
ouvia os adultos comentarem: fulano partiu.
Esta era a forma que eles achavam
menos sofrida de falar que alguém havia morrido,
principalmente quando estavam perto de crianças.
Era um jeito delicado que eles tinham
de citar a morte sem que ela parecesse tão chocante.
Cresci e comecei também a falar assim: -fulano partiu-
acabei achando menos dolorido,
menos violento se referir à morte dessa maneira.
Quando se diz que alguém morreu,
dá a impressão que se acabou,
desapareceu e imaginar que alguém que queremos
bem acabou ou desapareceu pra sempre é terrível.
Dói mil vezes mais do que precisar enfrentar
a sua própria ausência.
Partiu já é diferente, dá uma sensação de que
em algum ponto da vida nos reencontraremos
com essa pessoa querida novamente.
Fica mais fácil imaginar que ela viajou,
uma viagem sem data pra voltar,
mas com retorno garantido.
Enfim, descobri recentemente, que existe
uma outra categoria dentro desse universo.
São aqueles que nunca morrem
e, portanto, jamais partem.
São aqueles que embora desapareçam
de nossas vistas,
eternamente se fazem presentes
em nossa memória e nosso coração.
Os que nunca partem são as pessoas
que nortearam nossos dias,
colocaram um significado importante neles
e deixaram uma marca tão profunda em nós
que não importa onde estejam,
porque ao nosso lado, de alguma forma,
sempre estarão.
Morrer, partir, são coisas simples,
coisas do dia-a-dia.
Acontece toda hora, em todo lugar,
com todas as pessoas.
Os que nunca partem e os que nunca passam
pela dor de assistir alguém querido partir
são os felizardos dessa vida.
Dores momentâneas,
saudades e ausências à parte,
felizes daqueles que amaram alguém nessa vida
a ponto de jamais deixá-los
partir de seus corações.
Se quando eu me for,
por desígnio de Deus,
uma única pessoa não me deixar partir
me guardando dentro do seu peito,
eu direi que valeu a pena ter assado por aqui
e que minha estada nessa vida não foi em vão.
Mas enquanto ainda estou por aqui,
só tenho a dizer que dentro de mim
moram pessoas que nunca deixei
que partissem verdadeiramente,
assim, como não deixarei que partam,
jamais, algumas que ainda estão por aqui.
Os que nunca partem são aqueles
que descobriram o segredo de brilhar na terra,
mesmo antes de chegarem ao céu
e se tornarem estrela..."
(Silvana Duboc)

SONETO DE ANIVERSÁRIO

"Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece."
(Vinícius de Moraes)

PALCO DA VIDA

"A consciência que transita pela mundo
lança no palco da existência uma peça
da qual somos os atores e escolhemos o cenário,
e que possui um mero rascunho de roteiro
a que vamos somando linhas de improviso.
E mesmo as lágrimas externadas nesse divino palco
são o coroamento da arte de viver
interpretando uma individualidade.
E nosso Eu maior está lá nos assistindo da platéia,
sempre enternecido e grato pelas horas de rememorar
a trajetória do autoconhecimento, aplaudindo,
respeitando e amando o grandioso espetáculo
do personagem lúdico provisório..."
(Milton José Neves Júnior)

O MEU QUARTINHO DE VIDRO

"Você me envolveu e me cercou por todos os lados.
Você insistiu tanto nisso
que a coisa toda ultrapassou a metáfora.
Hoje eu estou literalmente presa
nesse quartinho de vidro que você construiu pra mim.
Sem janelas, só com uma portinha de trancar,
que é pra você entrar e se servir de mim.
Também não tem luz, que é pra ninguém me ver
e eu não ver ninguém, além de você...
Você fez assim porque é só assim
que você se sente seguro e certo
de que nunca vai me perder,
por eu não ter como escapar.
Aqui você me trata como rainha,
e eu não tenho do quê reclamar.
Você me cuida, me alimenta e me lava todos os dias.
Você me entretém:
se finge palhaço quando é pra eu rir,
e se faz amante quando é pra eu chorar.
Eu só choro de amor, nunca de dor,
porque até hoje você foi muito bom pra mim.
Os meus minutos sozinhas eu gasto pensando em você,
de forma que você me consome inteira.
Na presença e na ausência.
Mesmo assim, ao chegar,
você pega a sua lupa de Sherlock
e fiscaliza cada cantinho do quarto
pra ver se algo mudou desde a sua última saída.
Mede a temperatura do ar, a pressão atmosférica,
passa a mão por todos os milímetros das paredes de vidro
e analisa todos os meus objetos.
Depois tateia o meu corpo todo,
pra ter certeza de que ninguém me tocou.
Isso tudo nos rouba um tempo enorme,
e essa é a minha única reclamação, perceba.
Não ligo pra sua fiscalização, seu método ou sua análise.
Entendo o seu cuidado, o seu zelo, a sua insegurança.
Interpreto tudo isso como amor.
Mas hoje, meu caro, eu preciso te contar
que durante todo esse tempo você foi enganado.
Se você parar de se preocupar tanto
com as pessoas que me olham ao redor, e olhar pra cima,
vai ver que sobre nós não há nenhum teto.
Na sua pressa de me ter só pra você,
esse detalhe escapou à sua arquitetura.
Perdoa por não ter te contado antes,
mas é que eu também estive mergulhada em você,
e o mundo sempre me foi menor do que nós dois,
por conta disso.
Agora que você já se deu conta, eu também devo contar
que se você perdesse esse medo de me expôr ao mundo, e viceversa,
e acendesse as luzes, e voltasse os seus olhos só pra mim,
como os meus olhos são só seus,
você veria que eu tenho asas.
Duas enormes asas de borboleta nas costas.
Você me pergunta então porque eu nunca fugi,
mas é tudo tão claro: Porque lá fora não tem você,
e a minha liberdade é bem mais plena junto à sua.
Mas principalmente porque você me ensinou
outra forma forma de voar..."
(Juliana Baeta)

O AMOR DE AGORA

"O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno."
(Dante Milano)

AMOR E SEU TEMPO

"Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde."
(Carlos Drummond de Andrade)

PROTESTO CONTRA A APATIA...

"Eu tolero tudo no ser humano.
Compreendo todas as fraquezas,
as dores, os medos, os pecados...
Alguns inclusive, eu até gosto.
Adoro maçãs envenenadas...
Penso que os defeitos fazem parte da nossa estrutura.
É uma coisa assim, de sangue.
Perfeição a gente só encontra lá fora, no mundo.
Quisera eu ser um passarinho, um rio
ou um ciclo de chuva.
Por não ser, eu entendo os nossos erros.
A gente mente pra poder esconder nossa vergonha,
e a gente se envergonha por mentir.
Enfim, é tudo perdoado e compreendido.
A única coisa que eu não suporto é apatia.
Sabe? Frieza...
Aqueles olhos secos, a voz morta.
Não aguento falta de vida, não aguento falta.
Eu gosto é de excessos.
Sinceridade, luta, fogo.
Eu quero ver sangue e lágrimas nos olhos.
Eu quero briga e garrafas na cabeça,
eu quero um grito de dor, um tapa na cara,
uma cena de ciúme.
Meu Deus, eu quero um crime passional!
Tudo, menos apatia, medinho de se expôr,
fingir não sentir o que sente, e ser o que não é.
Tudo, menos nada.
Eu gosto é de vida.
Bagunça, movimento, esparro.
“Eu gosto é do estrago”..."
(Juliana Baeta)

MEU UNIVERSO PARALELO...

"A gente pode começar contando histórias,
e depois estrelas.
A gente pode contar histórias de estrelas,
e depois você me conta tudo.
Me conta o mundo sem abrir a boca,
que eu te mostro os hemisférios
nas linhas da minha mão.
E as minhas mãos estão no seu rosto gelado,
realizando o processo de translação da Terra.
Se isso nos seus lábios não for um pôr-do-sol,
eu suponho um sorriso.
O seu corpo todo é coberto de atmosfera.
O meu é luz e raio ultra-violeta,
e a gente se mistura pra aquecer a alma.
Eu quero lamber este seu cheiro de lua,
pra me purificar.
Nem o ar é mais o mesmo.
Agora ele é todo azul, feito céu.
O mesmo céu que eu roubei da sua boca
–céu da boca-, pra me acompanhar.
Os seus cabelos ficam cintilando na minha mão,
e eu sinto todos os pelinhos mais simbólicos da sua pele
se arrepiarem.
É quando meus cabelos se espalham no seu corpo
e você vê uma estrela cadente no céu.
Eu vejo outra na sua boca,
e acabo me perdendo de desejo ao invés de encontrar um.
Enquanto isso, as minhas mãos
continuam realizando a translação
e o universo gira em um segundo.
Na verdade fui eu que girei pra me acomodar
a você de outra forma,
e pra fazer com que a noite vire dia.
Eu sendo noite, e você sendo dia,
a gente é 6 horas da tarde.
O sol se pondo, a lua vindo,
mas os dois ao mesmo tempo, fundidos em degradê.
A minha parte clara é a sua escura.
O meu quente é o seu frio.
E assim, pelos contrários, eu me derreto na sua boca,
e você me despeja um tanto de mar.
Fui eu, com a função de lua, que puxei o seu mar pra mim.
Maré, maré...
Depois de tudo, a gente se limpa de estrelas
e você me devolve o seu sorriso pra eu me vestir,
meu universo paralelo..."
(Juliana Baeta)

UM POUCO DE MIM....

"Cresci com a cumplicidade do tempo
e passei da infância feliz e traquina
para a adolescência cercada de novidades e surpresas
que me fizeram aprender a diferenciar:
o mal do bem, a tristeza da decepção,
o sorriso da alegria da alma, e,
a mais bela de todas...
a descoberta do amor.
As adversidades estavam à minha espera,
entendi que há sempre um porquê para as suas visitas.
Sobrevivi a muitas batalhas e com a ajuda das reflexões,
embrenhei-me na trilha de entender a vida
em todos os seus segmentos.
Descobri que meus momentos e minhas reflexões
eram os mentores da minha intenção da escrita
e, assim, passei a colocar no papel a minha alma
ainda sem muita lapidação, mas vertendo sentimentos.
Foi aos dezoito anos que a saudade em mim se intensificou
e percebi que ela não mais adormeceria.
Uma saudade muito especial alojou-se em meu coração
e tornou-me um detentor de sentimentos expostos em versos.
De repente... surpreendi-me em meio a poemas
que descreviam os meus momentos vividos.
Percebi que havia ganho a cumplicidade do sonho,
da saudade e da esperança.
Os versos agrupavam-se e findavam em poesias sem rimas,
sem técnicas e sem pretensão alguma de me fazer poeta,
apenas um ser que faz da sensibilidade da alma
a transparência de seus momentos.
Desde então, assino meus poemas e textos
com a sutileza na sensibilidade de perscrutar a alma.
Esta sensibilidade adquiro com as adversidades e reflexões
pelas quais a vida me faz passar.
Preservo os valores, a ética e os bons princípios,
repudio a mentira e o ser com ausência de caráter.
Romântico e sonhador morrerei..."
(Marilda Diório)

AMOR DISCRETO

"Quando seus olhos tocam-me a alma
e suas mãos deslizam em carinhos,
transmitindo a suavidade
das pétalas em meu corpo,
meu coração em ebulição,
emana a reciprocidade
desse amor bem-vindo.
Ao caminhar diante da beleza da lua
em noites de cumplicidade infinda,
vem a certeza da beleza da vida
que transborda de felicidade
este discreto amor.
Vida translúcida,
impregnada de serenidade,
de sonhos erguidos
em castelos de carinhos,
são o prenúncio,
da realização de um final feliz.
Na melodia suave, que brinda
o encontro de nossos olhares,
dizem tudo de um amor
que não necessita de palavras,
nem de palco alheio
para o nosso representar.
Amor discreto, amor de sonhos,
amor de quimeras,
amor absoluto e verdadeiro,
caminhando na alameda
do amadurecimento da vida
em direção à luz da eternidade..."
(Marilda Diório)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

NO AMOR ME ETERNIZEI...

"Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.
Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos atos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei..."
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

ESCUTA...

"Escuta,
eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor -eu soubesse repor-
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!"
(Manoel Bandeira)

O BRILHO DE CADA UM...

"Cada pessoa brilha com luz própria
entre todas as outras.
Não existem duas fogueiras iguais.
Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas
e fogueiras de todas as cores.
Existe gente de fogo sereno,
que nem percebe o vento,
e gente de fogo louco,
que enche o ar de chispas.
Alguns fogos, fogos bobos,
não alumiam nem queimam;
Mas outros incendeiam a vida
com tamanha vontade
que é impossível olhar
para eles sem pestanejar,
e quem chegar perto pega fogo".
(Eduardo Galeano)

O AMOR É UMA COMPANHIA...

"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo
gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a
e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo,
não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim
como um girassol com a cara dela no meio..."
(Alberto Caeiro)

MEU CORAÇÃO NO TEU CALOR...

"Muitos de meus amigos vieram das nuvens
Com sol e chuva como simples bagagens
Eles fizeram a estação de amigos sinceros
A mais bela estação das quatro da terra
Eles têm esta doçura das mais belas paisagens
E a fidelidade dos pássaros de passagem
No seu coração está gravada uma infinita ternura
Mas às vezes nos seus olhos se passa uma tristeza
Então eles vêm se aquecer em mim.
E tu virás também! Tu poderás repartir ao findar das nuvens
E novamente sorrir para o bem de outros semblantes
Oferecer o que te envolve, um pouco de tua ternura
Quando um outro irá esconder sua tristeza.
Como não sabemos o que a vida nos oferece
Pode ser que eu não seja mais ninguém
Se me resta um amigo que realmente me compreenda
Eu esquecerei minhas lágrimas e meu sofrimento
E então, talvez eu vá ao teu abrigo
Aquecer meu coração no teu calor..."
(Françoiese Hardy)

NEM TUDO É DIAS DE SOL...

"... Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e ervas...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer,
lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo
e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja..."
(Fernando Pessoa)

O QUE SINTO FALTA DE TI...

"O que eu mais sinto falta de ti
É das tuas doces palavras em diminutivo.
É do teu mimar,
do teu jeito carinhoso de me dar atenção.
Sinto falta de cheirar o seu pescoço
De tocar o seu cabelo
E de te dar selinho.
Sinto saudades dos teus olhares furtivos
Sempre ansiosos para encontrar o meu olhar.
Faz falta os teus sorrisos de cortejo
E a tua maneira única de me namorar.
Sinto ainda o gosto das tuas promessas de amor puro
E de toda a vida que para nós dois eu construí.
Até do teu ciúme disfarçado sinto falta,
Também faz falta as tuas mensagens repentinas
E as tuas confissões ao pé da noite.
Mais do que tudo isso,
O que mais me faz falta,
É da pessoa que eu era quando estava contigo..."
(Germana Facundo)

PAPAGAIOS DE PAPEL

"Passaram os ventos de agosto,
levando tudo.
As árvores humilhadas bateram,
bateram com os ramos no chão.
Voaram telhados, voaram andaimes,
voaram coisas imensas:
os ninhos que os homens não viram nos galhos
e uma esperança que ninguém viu,
num coração.
Passaram os ventos de agosto,
terríveis, por dentro da noite.
Em todos os sonos pisou,
quebrando-os, o seu tropel.
Mas,sobre a paisagem cansada
da aventura excessiva -
sem forma e sem eco,
o sol encontrou as crianças
procurando outra vez o vento
para soltarem papagaios de papel..."
(Cecília Meireles)

ESTOU SEMPRE DANDO ADEUS...

"Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do porto de chegada que nunca é aqui.
Estou sempre dizendo adeus:
até a Deus, para o reencontrar
em outra esquina de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus à solidão
e à sombra..."
(Lya Luft)

ISSO PASSA...

"Às vezes solto sorrisos falsos
não para ser falsa com os outros
mas para ser falsa comigo,
para tentar revelar ao mundo
que não quero ser este meu outro lado
que teima em pesar mais na balança da vida.
Olho em meu redor e apetece-me fugir,
não reconheço nada, nem este quarto,
nem a minha pele, nem os meus dedos que escrevem
e depois sobe-me pelo peito uma tristeza enorme
e vaguei-o por aqui e por ali sem saber muito bem
qual o caminho que devo percorrer.
Quero sair, tomar um banho e ver a luz,
olhar a estrada e sentir-me ir mas algo me impede
e então páro de andar de um lado para o outro
como um cego à toa, cubro-me de paciência
e calma e sento-me para repensar
a minha vida em breves momentos.
Estou doente mas isto passa..."
(Margarete da Silva)

POR SIMPLES CURIOSIDADE...

"A gente começa a amar
Por simples curiosidade,
Por ter lido num olhar
Certa possibilidade.

E como, no fundo, a gente
Se quer muito bem,
Ama quem a ama somente
Pelo gosto igual que tem.

Pelo amor de amar começa
A repartir dor por dor.
E se habitua depressa
A trocar frases de amor.

E, sem pensar vai falando
De novo as que já falou...
E então continua amando
Só porque já começou..."

(Paul Geraldy)

SEM CUIDADO NENHUM...

"Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.
E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio me depreda.
E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.
Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse..."
(Konstantinos Kaváfis)

IMPOSSÍVEL...

"Quando é que passará esta noite interna,
O universo, e eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida,
que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!"
(Álvaro de Campos)

ESSE TEMPO QUE PASSA...

"Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza em meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás..."
(Dora Ferreira da Silva)

O MAIS BONITO DA VIDA...

"Preciso de um espaço,
um canto do mundo onde me encontrar,
não me interessa onde seja desde que seja um lugar,
depois também não quero saber
se tenho ou não companhia
o que me interessa é esconder-me e ficar por lá.
Preciso de um canto, vagaroso e leve
como a vida não como o fardo pesado que carrego,
queria eu ser capaz de encontrar um lugar comum
ao mundo mas não pode ser,
aliás eu só quero apenas compreender nos teus olhos
um lugar onde me perder só para me encontrar
e se não for pedir muito gostava que fosse possível
deixar-me estar aí nesse canto, um, dois, três dias,
o tempo que fosse preciso e o mais importante
nem é o tempo mas a intensidade com que se vivem as coisas.
Posso não saber nada da vida
mas entendi que quando procuro um lugar nos teus olhos
ele existe e ele não existe nos meus
quando vejo o meu reflexo no espelho
portanto algo de errado parece estar a acontecer.
Fico cansada de procurar calada um sítio onde permanecer,
um mesmo colo onde me amparar quando as quedas são fortes,
e elas têm sido tão fortes, de tão alto
que me parece impossível existirem uns braços
capazes de me abraçar.
Estou cansada! Serve apenas dizer-vos
que não tive um dia mau mas o meu pessimismo
por obrigação obriga-me a pensar que até foi mau,
obriga-me a criar no meu dia uma fase totalitáriamente má,
é um vício feio.
Eu não gosto de o ter.
Páro agora e deixo que o mundo fale por mim,
se olharem em vosso redor será complicado
encontrarem um espaço onde permanecer,
às vezes para muitos de vós pode demorar toda uma vida,
não desistam... o mais bonito da vida
é o que nos custa a ter
e o que me custa a ter é a mim própria..."
(Margarete da Silva)

O AMOR NÃO SE BASTA...

" Entre homens e mulheres
que acham que o amor é só poesia
tem que haver discernimento,
pé no chão, racionalidade.
Tem que saber que o amor pode ser bom,
pode durar pra sempre,
mas que sozinho não dá conta do recado.
O amor é grande mas não é dois.
É preciso convocar uma turma de sentimentos
para amparar esse amor
que carrega o ônus da onipotência.
O amor até pode nos bastar,
mas ele próprio não se basta."
(Martha Medeiros)

É TEMPO DE ME VERES...

"Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar..."
(Sophia de Mello Breyner)

A CRIANÇA QUE FUI...

"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim...
(Fernando Pessoa)

ATÉ INUNDAR O CORAÇÃO

"Se houver um tempo de retorno,
eu volto.
Subirei, empurrando a alma
com o meu sangue
por labirintos e paradoxos
até inundar novamente o coração.
-Terei, quem sabe,
o mesmo ardor de antigamente-."
(Lia Luft)

AQUI NÃO CABE A POESIA

"Aqui não cabe a poesia.
Aqui ficam à mostra as tripas
da angústia secular.
Aqui fala-se de desencontro
e impossibilidade,
de onipotência e utopia.
Aqui se cantam
as verdadeiras feridas do amor.
Todos os filhos de todos os pais do mundo
estão nas trincheiras cotidianas,
mas temos os braços amputados,
e não podemos apertá-los ao peito
como quando eram pequenos
e tínhamos a ilusão de que eram nossos..."
(Lya Luft)

A VIDA SÓ CONSOME O QUE ALIMENTA

"Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela e seu avesso ardente.
Do mesmo modo que da alegria foste ao fundo
e te perdeste nela e te achaste nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras nem desculpas
e em tua carne vaporize toda ilusão.
Que a vida só consome
o que a alimenta..."
(Ferreira Gullar)

BASTA UMA ESTRELA...

"Fazer o céu, com pouco a gente faz
Basta uma estrela
Uma estrela e nada mais
Pra ter nas mãos o mundo
Basta uma ilusão
Um grão de areia
É o mundo em nossa mão
Sonhar é dar à vida nova cor
Dar gosto bom às lágrimas de dor
O sol pode apagar, o mar perder a voz
Mas nunca morre um sonho bom dentro de nós."
(Mario Lago)

A ESTRELA É MINHA...

"Caminho do campo verde
estrada depois de estrada.
Cerca de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.

Eu ando sozinha
no meio do vale.
Mas a tarde é minha.

Meus pés vão pisando a terra
Que é a imagem da minha vida:
tão vazia, mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida!

Eu ando sozinha
por cima de pedras.
Mas a tarde é minha.

Os meus passos no caminho
são como os passos da lua;
vou chegando, vai fugindo,
minha alma é a sombra da tua.

Eu ando sozinha
por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto,
meu peito é puro deserto.
Subo monte, desço monte.

Eu ando sozinha
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha..."

(Cecília Meireles)

EXPLICAÇÕES E DECIFRAMENTOS

"A vida inteira busquei
Explicações e deciframentos:
Encontrei silêncio e segredo,
às vezes o conforto de um ombro,
outras vezes dor.
No último lapso
de um tempo sem limites
- embora a gente o queira compor
em fragmentos -,
abriram-se as águas
e entrei onde sempre estivera.
Tudo compreendido e absolvido,
absorta eu me tornei
luz sem sombra: assombro..."
(Lya Luft)

VOU APRENDER...

"Sou inquieta, áspera
E desesperançada
Embora amor dentro de mim eu tenha
Só que eu não sei usar amor
Às vezes arranha
Feito farpa

Se tanto amor dentro de mim
Eu tenho, mas no entanto continuo inquieta
É que eu preciso que o Deus venha
Antes que seja tarde demais

Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É exatamete o inesperado

Mas eu sei
Que vou ter paz antes da morte
Que vou experimentar um dia
O delicado da vida
Vou aprender
Como se come e vive
O gosto da comida..."

(Clarice Lispector)

CENAS DE VIDA

"Não.
Não escrevo o que sou.
Escrevo o que não sou.
Sou pedra.
Escrevo pássaro.
Sou tristeza.
Escrevo alegria.
A poesia é sempre o reverso das coisas.
Não se trata de mentira.
É que nós somos corpos dilacerados
–“oh, pedaço arrancado de mim!”
O corpo é o lugar onde moram
as coisas amadas que nos foram tomadas,
presença de ausências, daí a saudade,
que é quando o corpo não está onde está...
O poeta escreve para invocar essa coisa ausente.
Toda poesia é um ato de feitiçaria
cujo objetivo é tornar presente e real
aquilo que está ausente
e não tem realidade..."
(Rubem Alves)

LIBERDADE SEM LOUCURA...

"Se vens, perco a razão
E digo o que não quero.
Se não vens, desespero
E gasto o coração a desejar-te.
Ah, como é difícil
a arte de te ser fiel!
E como é cruel a tua tirania!
Noite e dia pregado
A um madeiro sagrado de amargura.
Duramente sujeito,
Ou então contrafeito
Na minha liberdade sem loucura..."
(Miguel Torga)

ETERNA ESCURIDÃO...

"Não posso mover meus passos
poe esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
-pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
-avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
-descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
Batem patas de cavalo.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
-já louca e fora do trono-
na sua proclamação.
Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua proclamação?
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
-liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeira...
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
rastro nenhum pelo chão.
Ó grandes muros sem eco,
presídios de sal e treva
onde os homens padeceram
sua vasta solidão...
Não choraremos o que houve,
nem o que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta a nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!"
(Cecília Meireles)

SOU DO TAMANHO DE MIM...

"Sou de poucos amigos
Grandes partidas
Partes rompidas
Sou de não falar demais
Despedidas no cais
Sou da cor lilás
Sou feita de névoas
Nódulos e néctares
Sou de aparecer de repente
De repetir sentimentos
Forçar certos momentos
Sou do tamanho de mim
Molécula carmim
Malévola no fim."
(Paula Tailtebaum)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

VONTADE DE RECOMEÇAR...

"Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho,
não dar nome às coisas
senão o de um vago esquecimento,abandono.
Despede-te de mim como se a vida recomeçasse agora,
não me procures onde a memória arde
e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal,
quando assim se recomeça
e a vida falha como um material solar e ilhéu.
Levamos poucas coisas, basta um pouco de ar,
os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa,
o espaço de uma mão.
Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade..."
(Francisco José Viegas)

CEGO MOVIMENTO DA MANHÃ...

"Nós vivemos na cidade
quase sempre perdidos nas nossas pequenas razões.
Estas ruas ainda prometem mais do que podem cumprir?
A breve epifania do amor
ou simplesmente um cúmplice que nos diga,
à mesa de um café, que não faz mal,
que pouco importam as perdas e danos que sofremos.
De qualquer modo o mundo continua.
Entre o medo e a esperança
procuramos a nossa incerta morada
e enquanto isso envelhecemos mais um dia,
colhidos pelo tempo em plena queda.
Nas praças, nos quintais, a noite
aparece depois do jantar cheia de boas promessas,
mas já vem condenada ao tropel dos crentes,
ao cego movimento da manhã..."
(Rui Pires Cabral)

RIR É O MELHOR REMÉDIO...

"Hoje curvei a minha cruz demasiado pesada
e olhei o meu próprio ser até descobrir
que para mim a terra não é redonda,
a alma não é quadrada,
o canto das minhas esquinas está esquecido mas não perdido.
Por vezes só invento ângulos novos
de onde ver a minha vida, salto, caio,
magoo-me e deixo que a alma amorteça a minha queda vadia.
Deixei-me perder na verdade por métodos insensíveis
e demasiados detalhados de ser
e julguei que o meu mundo estava perdido
mas depois reparei que afinal o horizonte
dos loucos como eu está nos passos que os outros dão,
não somos mais que seguidores terroristas da vida dos outros,
daí essa necessidade quase absurda de sermos tudo sozinhos
e de perdermos os nossos caminhos nos lugares onde nunca fomos.
Dá mesmo vontade de rir alto desse mundo secreto
só nosso ou só meu,
dá vontade de rir e de tanto rir até solto da garganta
os gritos que estão presos e desaperto os laços barulhentos
que quebram à partida a vontade de viver.
Rir!
Rir é o melhor remédio para os loucos como eu."
(Margarete da Silva)

O SOPRO AUSENTE...

"Teu rosto estende-se como o sopro ausente
destas tardes litorais,
o inocente abandono,
a uma morte capaz de calar a própria morte.
Estou sem tempo nem tempo,
à espera de ti que não virás,
e há o mar, uma esplanada
de mesas verdes no centro da vila,
o travo amargo de um gin tónico
logo pela manhã.
Assim se recusa o milagre fugaz
que não quero nomear,
uma ave demorando-se no crepúsculo
jovem da minha idade fustigada pelo vazio.
Por ti cedo à tentação e à vergonha
de uns versos tão inúteis como amar-te.
Entretanto, o meu corpo vai vacila
talvez nas esquinas demasiado brancas destas ruas,
arrasta-se por tabernas de pescadores
em busca de um inferno menos cruel.
Mas nada equivale ao olhar distante
com que trucidas o meu mais puro silêncio.
Sei destes naufrágios,
uma espécie de coração errando nos dias.
Não, não há consolo maior do que a fúria incontida
de beber até que nenhuma gota de álcool reste no mundo
- enevoar com raiva e paixão
a certeza de te perder sem te ter tido..."
(Manuel de Freitas)

TOCA-ME O SANGUE...

"Toca-me o sangue.
Peço-te que me toques o sangue.
Escuta este rumor dentro do meu peito,
esta palavra enlaçada
a uma pedra que arde dentro da terra.
Toca-me o sangue.
Ordeno que me toques o sangue.
Este rio que corre nos meus olhos,
a música silenciosa que o mar vem entregar
quando os homens regressam do crepúsculo.
Vê como estou vivo.
Vê como sabem a terra as minhas palavras.
Vê como tenho ensanguentadas as minhas palavras perdidas,
esses barcos que a tempestade teme e as aves anunciam.
Amo-te.
Toca-me o sangue.
Sente que venho da noite,
que é com angústia que chamo pelo teu nome,
sonho os teus sonhos,
espero as tuas mãos.
Toca-me o sangue.
Toca os fios de dor que me rasgam a boca.
Toca o fogo dos meus cabelos.
Toca-me o sangue,
a escuridão em chamas do meu peito.
Sou o que espera na noite.
Sou o que chora na sombra.
Sou o que espera a tua passagem silenciosa,
os teus quadris ardentes
navegando na noite impassível.
Espero-te. Espero-te.
Um perfume ergue-se das tuas mãos, um punhal.
Toca-me o sangue.
Sou o que espera na solidão inquieta
e toma a luz pela luz dos teus cabelos.
Espero um rio, é uma praia que espero,
o azul penetrante da tua tristeza secreta,
esse bosque rugindo um nome
e precipitando a fuga
dos que temem e estão intranquilos.
Toca-me o sangue.
Toca o arco de fogo que cai das minhas mãos,
as sílabas perdidas na terra
por que uma criança cresce para o sono
e toca a limpidez de uma lágrima.
A vida vem com a brisa.
Um astro aproxima-se do teu rosto.
Uma canção desprende-se
da árvore de espuma que a sombra engendra.
Toca-me o sangue.
O febril sangue do meu peito..."
(Amadeu Baptista)

SEM PODER CHORAR...

"Encostei-me a ti,
sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem,
depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí..."
(Cecília Meireles)

NÃO CONSIGO ALCANÇAR NADA!

"Hoje não sei se me apetece morrer ou dançar
ou ficar para aqui a fumar o passado
como se fosse uma cigarrilha das antigas,
aquelas que dão charme aos homens com mais de 40 anos.
Perdi o rumo da minha vida, não sei se foi ontem,
talvez tenha sido hoje ao início do dia,
o certo é que o perdi e agora quando o procuro não o encontro.
A vida é mesmo como um novelo de lã,
primeiro que a gente desenrole tudo...
Cansei de ficar à espera que me alcancem,
apetece-me alcançar mas o espaço entre nós
é sempre tão grande,
as minhas mãos não são tão grandes
como as mãos da distância que nos supera.
O tempo esse amigo ingénuo que de imortal tem tanto,
nem esse me ajuda quando me apetece decair nos braços de alguém
e chorar muito, chorar muito, demais.
Chorar o passado que já se foi e o presente que não é mais
que o breve arrastar do futuro que é efémero.
Não consigo alcançar nada!"
(Margarete da Silva)

A PELE...

"A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida num cofre
até às mais fundas raízes,
simule não ter pele,
quando de fato ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária,
era uma pele metida consigo mesma
e que servia de poço,
onde além de água ele procurara proteção..."
(Luís Miguel Nava)

UM DIA DE VENTO...

"Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras
e só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores, o vento dos cabelos,
o vento do inverno, o vento do verão,
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores
só ele traz a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento atualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto..."
(Ruy Belo)

AS PORTAS DO MEU CORAÇÃO...

"Hoje acordei a muito custo.
O dia será tão difícil
como às vezes me é difícil abrir as portas do meu coração,
de tarde tenho consulta no psiquiatra,
daqui a uns dias tenho consulta no psicólogo.
Desta vez eu queria que não fosse preciso virar costas
para rezar para que ela não aparecesse,
desta vez eu queria ser capaz de não chorar
sempre que saio de lá, ser capaz de resistir
e voltar a adormecer-me os sentidos e os sentimentos.
Mas será a mesma coisa,
chegar-me-ei perto para me afastar de novo,
demasiado perto, tão perto que o meu coração
se sinta bater nas mãos da psiquiatra.
Não quero isso, basta de tortura,
basta de diálogos fáceis e vagabundos de mim,
basta de mentiras ou receios.
Mas afinal quem eu sou?
Porque me querem mostrar uma pessoa
que não coincide em nada com aquilo que sou.
Sinto-me gasta pelos medicamentos a mais que tomo,
sinto-me gasta pelas palavras a mais que me dizem,
querem que eu escreva o quê?
Mentiras? Fartei-me delas.
Agora é um ponto final,
logo vou fechar as portas do meu coração,
parar de sorrir sem vontade e deixar-me adormecer
enquanto ela arranja meia dúzia de desculpas
para o meu estado psíquico atual.
Adormecer..."
(Margarete da Silva)

TU NUNCA VINHAS...

"Mas tu nunca vinhas com a noite –
E eu sentada com casaco de estrelas.
Quando batiam à minha porta
Era o meu próprio coração.
Agora pendurado em todas as ombreiras,
Também na tua porta;
Entre touros rosa-de-fogo
a extinguir-se no castanho da grinalda.
Tingi-te o céu cor de amora
Com o sangue do meu coração.
Mas tu nunca vinhas com a noite
E eu de pé com sapatos dourados..."
(Else Lasker-Schüler)

É DIFÍCIL ACORDAR...

"É difícil acordar, muito difícil
quando temos o coração a transbordar de emoções
e não sabemos como as explorar ou como as soltar,
há uma sensação de descontrolo quase impulsivo,
uma sensação de mistério envolta numa sensação de desespero,
fica-se então olhando o reflexo do que queremos passar
em imagens no teto de um quarto
que parece demasiado pequeno para o nosso sofrimento.
Já não sei por onde ir, há tantos caminhos...
Acabo de acordar com a cabeça a doer de tanto sonhar,
acordo cansada demais,
olho o relógio e dá-me vontade de voltar a adormecer,
ainda é tão cedo e para mim já se faz demasiado tarde,
tarde demais para ser, para ter, para ficar ou permanecer.
Eu sou o errado e o certo de um momento para o outro,
eu sou o crucifixo ou o pentáculo invertido,
eu sou o agora ou o amanhã de manhã, sou o que querem que seja.
Levanto-me tomo um morphex, quero é dormir,
quero lá saber destas histórias
e símbolos tontos que me ocupam a cabeça.
Quero encostar-me a um canto
e sentir-me na plenitude vaga do meu ser
e depois explorar a minha loucura num sono profundo.
O morphex não faz efeito, tomo mais um,
ainda olho o teto imaginando um horizonte cheio de emoções
para lá do limiar que me axfixia.
Tomo outro e já me sinto sem forças até para pensar,
dou em doida e morro de sono até decair..."
(Margarete da Silva)

PARA NUNCA TE ESQUECER...

"Vem aos meus sonhos,
faz em mim a tua casa.
Planta, em frente,
a cerejeira dos pássaros brancos,
deixa que eles pousem nos ramos
e cantem eternamente,
deixa que nas suas asas de luz
eu leia o meu nome,
antes de os relâmpagos acenderem os prados.
Vem aos meus sonhos,
vê os labirintos por onde me perco,
vê os meus países do mar,
vê, em cada barco que parte do meu coração,
as viagens que não fiz,
os amores que não tive,
a luz cruel da minha solidão.
Vem aos meus sonhos,
traz um fio de água
para as dálias do meu quarto vazio,
não queiras que as suas pétalas
sequem muito depressa,
caindo pelos delicados muros de cristal,
apagando a cor que dava vida
aos aposentos do solitário.
Deixa que ele evoque
a secreta doçura das colmeias,
e vem, vem aos meus sonhos,
ilumina o meu domingo de cinzas,
o meu domingo de ramos, o meu calvário,
diz que estás aqui,
nesta página que escrevo
para nunca te esquecer..."
(José Agostinho Baptista)

AMOR QUE DURAS...

"Amor que duras em meus lábios:
Há um mel sem esperança sob as hélices
e as sombras das grandes mulheres
e na agonia do Verão desce como mercúrio
até à chaga azul do coração.
Amor que duras:
chora entre as minhas pernas,
come o mel sem esperança..."
(Antonio Gamoneda)

O QUE FAREI?

"Mesmo que queira
eu não serei capaz de te revelar todos os meus segredos,
olho para mim e a única coisa que vejo é sangue,
sangue transformado em nada,
uma verdade quase apagada num mundo quase acabado.
Que é feito de mim?
Quando me apetece rir já nem rio,
quando me apetece sonhar já nem sonho,
quando me apetece abrir mão do resto
para ser eu própria não deixo de o fazer.
Cá dentro, no mais profundo de mim arde uma dor tão forte
que parece encher os espaços em volta,
desespero cruel que invade
e teima em fazer-me permanecer assim
como uma vadia de mim, desesperada, alucinada,
descarregada de desculpas demasiado óbvias,
queria ser capaz de sorrir
ou de aprender a fazê-lo de novo,
recebo tão bem os outros dou-me tanto
que eles nem se dão conta,
às vezes magoa ser rejeitada pelo vão da escada,
eu queria ter um mundo só meu
e tenho mas é tão inteiro
que não cabe neste mundo pequenino que me rodeia!
Agora o que hei-de eu fazer com ele?
Vou escondê-lo em mim até aparecer alguém com a alma vazia
capaz de me receber em amor?
Vou dá-lo sem medida e desiludir-me
por achar que ninguém o recebe tão bem como eu quereria?
O que farei?"
(Margarete da Silva)

A RESPOSTA NINGUÉM SABE...

"Não dizia palavras,
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.
Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.
Um contato ao passar,
Um fugidio olhar no meio das sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor,
Iguais em desejo.
Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta
Cuja resposta ninguém sabe..."
(Luis Cernuda)

A MINHA TÁTICA...

"A minha tática é olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és
A minha tática é falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível
A minha tática é ficar na tua lembrança
não sei como nem sei com que pretexto
porém ficar em ti...
A minha tática é ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois
não haja cortinas nem abismos...
A minha estratégia é,
em outras palavras, mais profunda
e mais simples
A minha estratégia é que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto por fim me necessites..."
(Mario Benedetti)

UM ESPAÇO VAZIO...

"Olho-me,
entre mim e o mundo existe um espaço vazio,
às vezes perco-me nas entrelinhas do que não disse
e depois deixo-me permanecer no desamor desencatador
de me saber distante de tudo, distante do mundo,
perdida de mim.
Já muitos silêncios me fizeram sofrer como este de hoje,
muitos silêncios me tornaram o eco vazio
do que não foi dito,
a complicação é o pecado original de quem é inteligente,
depois dá-se a volta ao cérebro
e perdemo-nos no nó que a vida nos parece ser.
Vejo-me e não gosto de mim assim, tão magra, tão oca,
tão nada e tão cheia de tudo que incomoda tudo
e todos com os enigmas que crescem
como ervas daninhas nas bermas da estrada.
Espero alguém, talvez nunca encontre,
talvez seja um mero gesto, um olhar chamativo,
a palavra já gasta mas a certeza de que espero algo
é tão absoluta como sentir-me viva mesmo sem me tocar.
Queria seguir um ou dois passos de alguém
que sem embaraço me mostrasse a vida, ou a sua beleza,
já que na minha frente só encontro a negrura
que me enclausura nesta espécie de céu,
pedaço de céu que não vale nem a ponta de um horizonte.
Apetece-me chorar, balançar um pouco
e sentir-me cair para depois recuar
e olhar o sal das lágrimas e ver-me afogar pela verdade
solta que não quero que seja a minha, esta não...
mas nunca duvidei ser eu própria a verdade nua e crua
que se revela no reflexo do meu espelho.
Silêncio! Deixem calar-se-me a boca
como se me cala o coração e a alma,
amordaçados pelas mãos das palavras interdictas,
se eu soubesse como doía nem por aqui tinha vindo..."
(Margarete da Silva)

NOS JARDINS DO MEU SILÊNCIO...

Há uma lâmina de frio encostada ao meu pescoço.
Posso recolher o mel da inesperada estação,
amar os teus lábios.
Posso ver cair os frutos, na distância,
aspirar ao sentido ardente dos cometas,
entrever o poema que oscila por trás das cortinas.
As três luas são um enigma,
e os enigmas sabe-se que são sinais trágicos.
O meu nome é hoje um sol despedaçado
no corpo inocente da primavera.
Abro os portões, o hausto dos campos
atravessa uma faca na garganta,
mas talvez eu possa cantar.
As luas arrebatam o sono inquieto
das cancelas terrestres,
comboios avançam sobre pétalas,
queimam a geada,
derrubam o eterno das montanhas.
Chega-se tarde ao que se ama.
Eu digo, eu canto, tu danças, levitada,
nos vastos jardins do meu silêncio..."
(Vasco Gato)

O QUE MATAR...

"Isto foi um erro,
estes braços e pernas
que já não funcionam
agora está partido
sem espaço para desculpas.
A terra não conforta,
apenas cobre se tiveres
a decência de ficar quieto...
O sol não perdoa,
olha e continua a andar.
A noite infiltra-se em nós
através dos acidentes
que provocamos um ao outro.
Da próxima vez que cometermos amor,
devemos escolher primeiro o que matar."
(Margaret Atwood)

DE REPENTE...

"E de repente o mundo pára,
até eu páro sem querer,
já não me esqueço do que padeço e deixo-me enlouquecer,
balanço na corda-bamba do mundo que parece ser o que não é,
olho os rostos das pessoas envolta
e não me canso de julgar-me mal, olho os meus braços,
e enquanto tudo pára deixo-me chorar as cicatrizes
de uma dor maior que o horizonte que se avizinha,
chorar a imensidão sem limites dos tempos
que eu quereria que não tivessem passado assim tão rápido.
Choro enquanto balanço entontecida pelo que não foi
e até pelo que poderia ter sido...
Os meus próprios braços sacrificados
pelo pecado original de me saber viva,
se a morte me empurrasse talvez só um bocadinho,
talvez eu não fosse capaz de negá-la tanto e me deixar ir,
me deixar ser levada pelos seus braços,
se a morte me viesse buscar eu iria
mas sinto que não posso ir ao encontro dela."
(Margarete da Silva)

DE QUALQUER MODO...

"De qualquer modo dança,
De qualquer modo sente.
De qualquer modo o corpo contém o dia.
De qualquer modo as cores e o músculo.
De qualquer modo o coração.
De qualquer modo sempre no fundo a memória.
De qualquer modo sem teorias.
De qualquer modo com a teoria da poética
que é não existir teoria e só existir poética
De qualquer modo a ciência atrapalha um pouco
mas não totalmente.
De qualquer modo curiosidade.
De qualquer modo coleccionar montanhas.
De qualquer modo acabar quando o ritmo exige
que se continue. O ritmo exige coisas
que não devemos aceitar obedecer ser escravos..."
(Gonçalo M. Tavares)

UM RASTRO DE SILÊNCIO...

"Existe um rasto de silêncio
pelas ruas desta cidade onde moro.
O meu corpo tece horas já
e nada se apaga como antes.
Onde estou, o frio é incessante
e às minhas mãos queimam-se fotografias
como se o passado não existisse mais.
De hoje em diante, irei apagar-me em cada dia,
para que nada reste dentro de mim
ou dentro da garrafa vazia.
Por isso te vejo a desaparecer rapidamente,
como um dente-de-leão ao vento da minha voz,
ao agredir-te sem que te doa
ou marque para sempre.
E para que os dias passem,
bebo-me de dentro das mãos.
Como um vinho verde que me corre no corpo
e assim a visão do mundo é mais carente
-o frio que sinto é da cidade.
Nada mais existe por aqui
que me prenda ou que me faça ficar.
Visto a mala para pensar na partida,
carrego-me pela porta até ao jardim
que se estende lá fora,
sem luz sem sol, nem calor.
Os meus pés já não caminham porque não sabem.
Porque todas as cartas me ensinaram
que a maneira como se pisa um ladrilho
é igual à de pisar um rosto
mesmo que de tal não se goste.
Por isso perco os sentidos nesta cidade
sem polícia e sem refúgios
-como se fosse eu o último a perder-me
nas ruas labirínticas e planas
onde o vento me espalha a memória
como água em papel..."
(Sérgio Xarepe)

OLHO-ME NO ESPELHO...

"Olho-me ao espelho,
o rosto contido nas meia dúzia de palavras
que sei quando serão ditas,
ao longe um mar inteiro de fugas passageiras
que parecem não me alcançar e canto
sobre as sombras sem medo de me perder
e depois engulo a minha própria saliva
e tento reconhecer-me. Afundo-me
na perfeita ou quase perfeita sensação de desconsolo
e descontrolo que acaba por dar cabo de mim,
mergulho mais fundo, tão fundo que nunca saberei
onde colocar os braços ou os pés a seguir.
Leva-me o entusiasmo de me saber por fora tão densa como o ar,
tão viva como esta sensação de estar morte que me mata a seguir.
O feitiço? O feitiço e a loucura de não saber
o passo que darei a seguir porque este mar é bravo
e é pecado não aceitar e nem acreditar no futuro
que se revela cada vez mais incerto ao meu olhar."
(Margarete da Silva)

O AMOR É TÃO MONÓTONO...

"O amor é tão monótono…
Porque ele é o cimo sensível
de uma imensidade de coisas que se esqueceram.
Como falar desse mínimo que é o vértice
de todo um mundo que o sustenta?
Falar de nada, que é o todo nele?
Podia dizer o teu nome infinitamente
na multiplicação do que nele me ressoa.
E é assim o que mais me apetece, dizê-lo, dizê-lo.
E ouvir nele o maravilhoso que me abala todo o ser.
Poderia escrever o teu nome ao longo do que escrevo
e teria talvez dito tudo.
Mas eu queria desse tudo dizer também o que aí se oculta.
Dizer o meu enlevo e a razão de ele me existir.
As tuas mãos nas minhas.
O incrível miraculoso de eu dizer o teu rosto.
O ardor de um meu dedo na tua pele. Na tua boca.
O terrível dos meus dedos nos teus cabelos.
O prazer horrível até à morte
da minha entrada no teu corpo."
(Vergílio Ferreira)

FICA PARA SEMPRE...

"Onde menos te encontro é onde tu exististe.
Desprendeste-te donde estiveste
e é em mim que mais me acontece tu estares.
Mas nem sempre.
Quantos dias se passam sem tu apareceres.
E às vezes penso é bom que assim seja,
para eu aprender a estar só.
Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro
e eu quase sufoco da tua presença.
Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro
e digo-te vai-te, vai-te embora.
Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz.
E digo-te não vás. Fica. Para sempre.
Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça
e o de endoidecer contigo.
Porque tu foste de um mundo incorruptível
onde o tempo não passa e é aí que tu moras no eterno de ti.
Mas nem sempre consigo ver-te na emoção
que me abala ao lembrar a tua imagem.
Como nem sempre me emociona ouvir certas músicas
ou olhar um quadro ou reler um poema.
Ou olhar uma estrela, uma flor.
Há em nós o dom perverso de só raramente ver
o outro lado das coisas onde mora o seu mistério.
Lembro-me assim de às vezes procurar na tua face
a outra face que lá não estava e era a mais bela de ti..."
(Vergílio Ferreira)

EU NÃO SOU PEDRA...

"Uns corpos são como flores,
Outros como punhais,
Outros como fitas de água;
Mas todos, cedo ou tarde,
Serão queimaduras que em outro corpo aumentem,
Convertendo pelo fogo uma pedra num homem.
Mas um homem agita-se em todas as direções,
Sonha com liberdades, compete com o vento,
Até que um dia se apaga a queimadura,
Volta a ser pedra no caminho de ninguém.
Eu, que não sou pedra, mas caminho,
Que, ao passar, atravessam os pés nus,
Morro de amor por todos eles;
Dou-lhes meu corpo para que o pisem,
Embora os leve a uma ambição ou uma nuvem,
Sem que nenhum compreenda
Que nuvens ou ambições
Não valem um amor que se entrega..."
(Luis Cernuda)

JÁ NÃO ME ABRAÇO...

"Deixo-me abater,
talvez o mundo seja mesmo este conjunto abstrato
quase intacto de ser, quebro as amarras que me iludem
e iludem um resto do mundo com sonhos que ainda virão
e depois quebro tudo o resto
e até digo que não presto enquanto arranco o meu coração.
Sento-me no teu colo mais do que uma vez deixas-me cair,
a vida para ti é assim tão leve?
Atiras-me e deixas-me cair,
percorres a minha face com adornos que não me pertencem
e pintas os meus lábios com o sangue dos meus braços
que cortaste com o mau tempo,
se a vida fosse assim tão bonita como são os dias de Outono.
Eu queria um tempo para mim, chegar ao meu barco
e remar sem me sentir presa a lado algum,
agito as mãos quase afogadas pela água das lágrimas que choro...
triste! Muito triste ter o chão coberto pelos meus cansaços,
olhar para o lado e desesperar com a falta dos teus abraços,
teus? Meus até porque eu própria já não me abraço..."
Não gosto de mim!"
(Margarete da Silva)

O AMOR QUE TENHO POR TI...

"E eu quero brincar às escondidas contigo
e dar-te as minhas roupas
e dizer que gosto dos teus sapatos
e sentar-me nos degraus enquanto tu tomas banho
e massajar o teu pescoço e beijar-te os pés
e segurar na tua mão e ir comer uma refeição
e não me importar se tu comes a minha comida
e querer-te de manhã mas deixar-te dormir um bocado
e beijar-te as costas e tocar na tua pele
e dizer quanto gosto do teu cabelo, dos teus olhos,
dos teus lábios, do teu pescoço...
e pedir desculpa quando estou errado
e ficar feliz quando me desculpas
e olhar para as tuas fotografias
e desejar ter-te conhecido desde sempre
e ouvir a tua voz no meu ouvido
e sentir a tua pele na minha pele
e ficar assustado quando estás zangada
e abraçar-te quando estás ansiosa
e amparar-te quando estás magoada
e querer-te quando te cheiro
e ofender-te quando te toco
e choramingar quando estou ao pé de ti
e choramingar quando não estou e babar-me para o teu peito
e cobrir-te à noite e ficar frio quando me tiras o cobertor
e quente quando não o fazes e derreter-me quando sorris
e desintegrar-me quando te ris
e não compreender porque é que pensas que eu te estou
e ter um sentimento tão profundo que para ele não existem palavras
e atrasar-te na cama quando tens de ir
e chorar como um bebê quando finalmente vais
e vaguear pela cidade pensando que ela está vazia sem ti
e querer aquilo que queres e achar que me estou a perder
e saber que estou seguro contigo
e contar-te o pior que há em mim
e tentar dar-te o meu melhor porque não mereces menos
e esquecer-me de quem eu sou
e tentar chegar mais perto de ti
porque é maravilhoso aprender a conhecer-te
e de alguma transmitir algum do esmagador,
imortal, irresistível, incondicional, abrangente,
preenchedor, desafiante, contínuo
e infindável amor que tenho por ti..."
(Sarah Kane)

TENHO MEDO DE FICAR...

"Quero que aconteça, quero que o céu não esqueça
e não deixe que se adormeça esta constante vontade de falar,
escrever, desenhar, expressar ou chorar
todo um eu que se escondeu e quem sabe se perdeu
e se deixou despenhar pelos caminhos que já conhecia de cor.
A chuva caía tão rápido como caía em vertigem a minha verdade,
caía com a minha verdade o desatino,
num desespero e num desconsolo traumatizante,
até eu que pouco sei do que escrevo entendia
a estrondosa e dolorosa rajada que por aí vinha,
tempestade descomunal e sem ruídos sintetizadores.
Quero que aconteça mas amorteço a queda da verdade
com os desejos que contenho dentro de mim,
alucinação incrédula de um pedaço de vácuo
que me imortaliza só porque tenho o poder
de segurar nos braços o que cai sobre mim.
Tenho medo de ir, tenho medo de ficar
e o que virá a seguir será tudo o que terei para dar,
ou o céu é azul como as ondas do mar
ou é cinzento como as meias
que trago hoje calçadas hoje..."
(Margarete da Silva)