domingo, 1 de novembro de 2009

BIOGRAFIA

"Escrevo minhas formas nessa passagem do vento
sobre os ossos que ainda me sustentam.
São fragmentos antes de serem restos esquecidos,
fugidos da memória.
Sigo as palavras como as estações no passado.
Se de lá vim para ficar, primeiro;
para depois, antes de o esquecimento chegar, se tornar raiz,
não me julgues sem saber quem sou.
Conheci muito cedo o fogo e as suas cinzas,
da madeira desprendida de onde nasci.
Não retornei.
A vegetação, em súplica, perdera seus verdes e ervas.
O sol há muito havia se posto.
A noite e seus traços avançavam sem medos.
Foi quando olhei pela última vez os meus mortos.
Segui adiante com a fome e o longo caminhar como companheiros.
Os ombros começaram a curva da idade anos
depois de a maresia sair da minha pele.
Nada era inferno ou paraíso,
apenas carne que se recusava à entrega de seus músculos ao tempo.
Lembro das cidades e de cada uma das suas janelas
muitas delas coloridas, outras descascadas.
Os lençóis desenhavam no espaço o amor não resistente.
Viver nos extremos a cada palmo do dia era uma lembrança dolorida.
Por muito pouco fui julgado e sentenciado à solidão.
A única voz que escutei foi a da minha respiração,
quando a luz apagou e a tranca enferrujada cumpriu o seu destino,
o de me deixar preso dentro de mim.
Não mereci o que buscava.
O vidro cortou o céu da minha boca
enquanto os sinos da igreja badalavam sem cessar.
Ninguém ouviu os meus gritos de dor.
E eu era um mar revolto
e em minhas águas os barcos recortavam meu peito
e suas âncoras cravavam fortes em meus pulsos.
Levei séculos para chegar ao pampa.
Os campos perdiam-se do meu olhar
como uma névoa enfurecida cobre o início do inverno.
Também ali fiquei muito perto do fim.
Sabia das diferenças e dos abismos.
Ainda assim arrisquei os passos que me restavam.
As manhãs despertavam os meus pesadelos.
Há muito não sonhava mais.
Abri a última janela que vi.
A cortina cobriu meu rosto como uma mortalha.
Voltei para o fundo do meu universo.
Desisti de recomeçar.
Nunca entendestes a carta que te enviei.
A morte não me assustava.
A laje fria me acolheu em paz.
Agora sou o que atravessa as mortes.
Tudo o que desejo é reconstituir o meu passado
e reter na memória os teus olhos.
Os mesmos que um dia esperei encontrar
em meio a um texto perdido
em minha passagem por tua alma..."
(Fernando Rozano)

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