sábado, 7 de novembro de 2009

O MISTÉRIO DO SOL

"Daí que tu eras a mais bonita.
Eu cruzava as mãos por sobre o colo, pernas em vê,
dedos livres tocando a bacia d'água,
a irrefletida escuridão de alumínio.
Onde iluminava, luz.
Eu queria para sempre as tuas cirandas,
as tuas brincadeiras de menina e coxas de mulher.
Boi, boi, boi, meu anel de estanho era estranho e desgastou.
Enquanto ias enchendo a caixinha de areia,
e pintavas uma imagem no chão,
e abusavas das mechas por cima do molhado,
eu te ia vendo crescer por sobre a sombra de tuas curvas leves,
para ir repousar mole ante a sequidão das bordas da bacia,
derretendo de sol.
E colocavas o pano dentro d'água, e tiravas, e torcias,
e colocavas de novo, e sorrias.
E sorrias, ah. Até o infinito.
O molhado das formigas desconfiava as trombas d'agua
que adviriam de teus movimentos, lentos.
Contornavam teu corpo em fila e procissão, atentas e submissas.
Eu as acompanhava, absorto.
Compreendendo que um grão de areia era rochedo,
tomava a indiana colocação e via a escultura obtusa ante o sol,
arabesco contra-luz, doiranças loiras, inspiração ofegante:
era teu corpo, enorme, disparando em cores um calor demasiado
para íris tão pequenas, agora aterras ao chão.
E era a ardente maquinação das tuas mãos, o arquejo dos teus lábios,
uma concentração feminina, os pêlos da pele do teu antebraço,
e era a terra que tremia,
e eu apertado entre a fila que andava em continência.
Tu ias construindo o castelo, muradas,
e éramos pontos indistintos contornando teu vestido.
E eu era espelho, diante da imagem imaculada e rebelde
dos teus seios tão bem guardados, tão dizentes,
e era em mim tão forte a vontade de arrancar-te o vestido
para vê-la envolvida pelo sol, completamente!
E eu era pequeno.
Com que prece poderia inverter as escadas,
com que engenho escalar tua torre, matar o dragão,
arrombar a porta, furar de espada os guardas insones,
tomá-la nos braços?
E era a fila, o peso da folha sobre os braços,
tua imagem aquosa suando a bacia d'água,
e como eras loira e linda e...
E como era difícil te ver ali debaixo, e caminhando,
contornando tuas costas,
para depois ir rever o esforço de teus braços,
um coçar-se de teus pés, e a lisura do tornozelo.
Agora que entrávamos pela vasta e fresca sombra de teu colo,
podia sentir mais teu cheiro, teu cheiro de mulher,
e ia carregando quilos de folha verde,
e era enxergar tuas pernas com a firmeza de dentro,
depois o joelho, as coxas, e as bordas do vestido,
e mais rochedos perfumados, extensões clarificadas de cor.
E era perceber que as tuas pernas se juntavam nalgum ponto,
confluíam, levavam ao mesmo lugar, e era caminhar para dentro,
sempre para dentro da imagem produzida pela tua sombra,
percebendo os rumores do sol, e o cheiro do ocaso,
perdendo o foco das pernas, para concentrar a marcha
em direção a um ponto
onde a mesmo a sombra parecia ensombrecer,
sempre para dentro.
E era caminhar sempre para dentro, pequeno, surpreso,
candente e arrebatado,
para ir fecundar em teu corpo imenso os mistérios do sol..."
(Luis Gustavo Cardoso)

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