quinta-feira, 5 de novembro de 2009

UM RIO CORRE NA ALMA

"Por mais que eu me seqüestre,
aquele rio me toma.
E começa a desenhar-se na lembrança
seus contornos imprecisos,
rio limpo, atravessando a alma sem escoriações, sem danos,
embora maculada para sempre a sua líquida história,
evocação inscrita agora, nessa idade sazonada e madura.
Traz ao poema os primeiros signos do mal.
Primeiro surgem os palustres afogados, continentais criaturas,
depois os assassinados, cujos inquéritos policiais
não decifraram a condição de peixes compulsórios,
os que tomaram o rio de empréstimo
e têm nele a morada derradeira.
Obriga-os ao fundo um colar de pérolas vulcânicas,
utilitárias da construção civil de grutas.
Todo rio é da infância e principia com águas de pouco caso
e vai ganhando lenda e autoridade a cada braça percorrida
para consumo próprio e assombração de inimigos.
E vai morrer, melhor, somar-se ao mar,
cumprindo o seu destino, feito os kamikazes,
os poemas, os meninos.
Veste-se de ira quando violada sua integridade,
ao jugo de substâncias estranhas submetido.
Deve vingar-se semeando a morte se preciso,
pestilências de calibre, delegar armas letais
aos esquadrões de sua guarda
para dizimar aqueles que cometem lesa-majestade contra ele.
Rio que se preze não deve dar testemunho de pusilanimidade,
deve disfarçar seus tristes tons,
creditar à pujança toda venenosa escuma.
E mesmo que os discípulos chorem lágrimas veladas,
esse Mestre deve transitar por entre eles de cabeça erguida.
Um rio assim antepara os aguilhões da mágoa.
Quem obtém um rio assim não anda mais sozinho.
Rio desse naipe, mesmo turvo como sói, rio deve,
até que banhem o coração de toda humanidade as suas águas."
(Erorci Santana)

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