domingo, 1 de novembro de 2009

MUITO ALÉM DA PORTA...

"Todas as manhãs são iguais.
O pequeno quarto guarda segredos.
Olha para fotografia presa no canto direito do espelho quebrado.
É como um pavio aceso, contornando a moldura enferrujada.
A pouca luz mostra o desenho recortado,
o sorriso da criança na superfície do papel colado ao vidro,
e o rosto sério da mulher
são formas de unir vários tempos em um só tempo.
É uma espécie de viver em metáfora a fotografia.
Decide mudar.
Alguma coisa está fora do lugar,
há partes desiguais na cor e na textura.
Estilhaça mais o vidro.
Outro desenho se apresenta
em um fluxo contínuo de pequenos pedaços
espalhados no retângulo cuja imagem vai ficando distorcida.
O sorriso já tem cortes na face do menino.
Os raios do sol irrigados pelas frestas da janela
ofuscam os olhos da mulher.
Não são mais os mesmos de horas antes.
A mecha luminosa transforma a imagem.
Outra vida imaginária habita aquele quarto.
Neste nascimento, a chuva chega como um presságio.
Na rua não se vive só de imagens.
Dentro, o arco se abre, os signos se revelam, as dores são esquecidas.
Se algo sobrevive é a história hoje insistente nos pensamentos.
Pisa os poucos metros existentes entre o recordar e o esquecer,
entre a metáfora e o real, entre a chuva de fora e a luz de dentro.
Lança um último olhar,
no espelho os estilhaços brilham, formam anéis.
E o que está escrito em cada um
são histórias de começos e fins de outras histórias.
A fotografia inicia uma lenta curva para cair.
Nas palmas das mãos encontram−se as linhas tortas do passado.
Vira−se para a porta.
Do outro lado não há lembranças, apenas perguntas sem repostas.
As noites nunca mais serão as mesmas
sem a precisão das horas..."
(Fernando Rozano)

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