segunda-feira, 16 de novembro de 2009

NA TERRA DO CORAÇÃO

"Passei o dia pensando
—coração meu, meu coração.
Quis vê-lo, escapava.
Batia e rebatia, escondido no peito.
Então fechei os olhos, viajei.
E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado,
à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos
que suas faces mal se adivinham.
Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável
em papel de seda onde caiu uma gota d’água.
Meu coração não tem forma, apenas som.
Meu coração é um entardecer de verão,
numa cidadezinha à beira-mar.
Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa,
debruçado sobre a qual um único bêbado
bebe um único copo de bourbon,
contemplado por um único garçom.
Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado.
Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores,
é saboroso de todos os sabores.
Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é um deserto nuclear
varrido por ventos radiativos.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido,
criando sem parar Frankensteins monstruosos
que sempre acabam por destruir tudo.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa,
coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos
—ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel,
no centro de um jardim encantado,
alimentando beija-flores que, depois de prová-lo,
transformam-se magicamente em cavalos brancos alados
que voam para longe, em direção à estrela Vega.
Levam junto quem me ama,
me levam junto também..."
(Caio Fernando Abreu)

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