sábado, 15 de agosto de 2009

FAZ DE CONTA...

"Fazia de conta que ela era uma mulher azul
porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,
faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,
faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,
faz de conta que uma veia não se abrira
e faz de conta que que dela não estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate,
e que ela não estivesse pálida de morte
mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade,
precisava no meio do faz de conta
falar a verdade de pedra opaca
para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,
faz de conta que amava e era amada,
faz de conta que não precisava de morrer de saudade,
faz de conta que estava deitada
na palma transparente da mão de Deus,
faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo
pois viver afinal não passava
de se aproximar cada vez mais da morte,
faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade
quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam
e ela não sabia desfazer o fino fio frio,
faz de conta que era sábia bastante para desfazer
os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos,
faz de conta que tinha um cesto de pérolas
só para olhar a cor da lua pois ela era lunar,
faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados
surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão,
faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,
faz de conta que se descontraía o peito e a luz douradíssima e leve
a guiava por uma floresta de açudes
mudos e de tranqüilas mortalidades,
faz de conta que ela não era lunar,
faz de conta que ela não estava chorando por dentro..."
(Clarice Lispector)

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