quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A GENTE SE ACOSTUMA...

"Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma
a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma à poluição,
à lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não colher frutas do pé,
a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada,
a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo
e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta,
e que, de tanto acostumar,
se perde de si mesma..."
(Marina Colassanti)

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