domingo, 2 de agosto de 2009

TENHO UM DRAGÃO QUE MORA COMIGO...

Não, isso não é verdade.
Não tenho nenhum dragão.
E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém.
Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço
- seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu.
Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser.
Eles são solitários, os dragões.
Quase tão solitários quanto eu me encontrei,
sozinho neste apartamento, depois de sua partida.
Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo,
alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado.
E digo ilusão porque, outro dia,
numa dessas manhãs áridas da ausência dele,
felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência),
pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor
da mesma forma que precisam da ilusão de Deus.
Da ilusão do amor
para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta;
da ilusão de Deus,
para não se perderem no caos da desordem sem nexo.
Os dragões não permanecem.
Os dragões são apenas a anunciação de si próprios.
Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam.
As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena.
Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem.
O aplauso seria insuportável para eles:
a confirmação de que sua inadequação
é compreendida e aceita e admirada,
e portanto - pelo avesso igual ao direito -
incompreendida, rejeitada, desprezada.
Os dragões não querem ser aceitos.
Eles fogem do paraíso,
esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos
- como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo
e prendê-lo para sempre junto a mim.
Os dragões não conhecem o paraíso,
onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega,
numa eterna monotonia de pacífica falsidade.
Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim.
Mas respiro fundo,
esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim.
Para manter-me vivo,
saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas
ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento
e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente,
tornar-me então outra vez capaz de afirmar,
como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo.
E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim,
seria totalmente verdadeira,
mesmo sendo completamente mentira.
Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço
que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria,
tarde da noite, sozinho neste apartamento
no meio de uma cidade escassa de dragões,
repito e repito este meu confuso aprendizado
para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos
do sereno velho-eu-mesmo:- Dorme, só existe o sonho.
Dorme, meu filho.
Que seja doce.
Não, isso também não é verdade..."
(Caio Fernado Abreu)

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