domingo, 24 de janeiro de 2010

COMO A LUA NA ÁGUA

"Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca,
desenhando-a como se saísse da minha mão,
como se a tua boca
se entreabrisse pela primeira vez,
e basta-me fechar os olhos
para tudo desfazer e começar de novo,
faço nascer outra vez a boca que desejo,
a boca que a minha mão define
e desenha na tua cara,
uma boca escolhida entre todas as bocas,
escolhida por mim com soberana liberdade
para desenhá-la com a minha mão na tua cara
e que, por um acaso
que não procuro compreender,
coincide exatamente com a tua boca,
que sorri por baixo
da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas,
cada vez mais de perto,
e então brincamos aos ciclopes,
olhando-nos cada vez mais de perto.
Os olhos agigantam-se,
aproximam-se entre si,
sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se,
respirando confundidos,
as bocas encontram-se e lutam sem vontade,
mordendo-se com os lábios,
quase não apoiando a língua nos dentes,
brincando nos seus espaços
onde um ar pesado vai e vem
com um perfume velho e um silêncio.
Então as minhas mãos
tentam fundir-se no teu cabelo,
acariciar lentamente
as profundezas do teu cabelo
enquanto nos beijamos
como se tivéssemos a boca
cheia de flores ou de peixes,
de movimentos vivos,
de uma fragrância obscura.
E se nos mordemos a dor é doce,
e se nos afogamos num breve
e terrível absorver simultâneo do fôlego,
essa morte instantânea é bela.
E há apenas uma saliva
e apenas um sabor a fruta madura,
e eu sinto-te tremer em mim
como a lua na água..."
(Julio Cortazar)

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