sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

ESPAÇO NEGRO

"Não vás. E não fui.
Ainda que todo o dia, toda a vida,
tivesse esperado aquele instante,
único entre todos os instantes,
ainda que tivesse imaginado o mundo
ao pormenor depois da fronteira pequena
daquele instante, não fui.
Não vás.
Ainda que se tivesse levantado uma cegonha
a planar como um abraço que nunca demos,
mas que julgámos possível,
ainda que todo eu a tenha olhado,
ainda que lhe tenha dito espera por mim,
hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo
nos tenha visto onde só vão os mais sinceros,
entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama,
e deixei que o instante único passasse indistinto
e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso
de instantes desperdiçados,
instantes desperdi­çados antes do tempo,
durante o fastidioso do seu tempo,
depois da memória má do seu tempo,
no tédio de não ter e de não esperar nada.
Não vás. E não fui.
Abro e fecho a porta da rua.
A noite é como a conheço: negra e profunda,
a isolar-me dentro de si e a dizer-me
que também eu sou a noite que a noite é.
Não ponho as mãos nos bolsos,
deixo-as e deixo os braços.
Levanto a cabeça e olho a noite no céu,
não as estrelas,
mas o espaço negro que as separa..."
(José Luís Peixoto)

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