quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

RETICÊNCIAS

"Arrumar a vida,
Pôr prateleiras na vontade e na ação.
Quero fazer isto agora,
Como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro,
Firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o definitivo,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem
—um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado
Da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos;
Sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos,
Se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada,
E são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida
A olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado
Dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão
Como um hino inconsciente,
Rodinha dentada
Na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura,
De mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada
A parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando
Em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara,
Inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses
Diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos
Pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho
Que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta
Fecho a secretária e o poema...
Como um deus,
Não arrumei nem uma coisa nem outra..."


Àlvaro de Campos

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