sábado, 2 de janeiro de 2010

ESTÁS AQUI...

"Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e ouço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei
que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto,
como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto,
este bicho de hábitos, manias, segredos,
defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora,
na vida profissional ou social
só sou um nome e sabem o que sei,
o que faço ou então sou eu
que julgo que o sabem e sou amável.
Seleciono cuidadosamente os gestos
e escolho as palavras
e sei que, afinal, posso ser isso
talvez porque aqui, sentado dentro de casa,
sou outra coisa, esta coisa que escreve
e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço
que afeta tudo o que faço;
Bem entendido, o que faço com este braço.
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala, a pensar noutra coisa
e dizer: aqui é a sala de estar, aqui é o quarto,
aqui é a casa de banho e no fundo escolher
cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer.
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala.
Sou só estas salas, estas paredes,
esta profunda vergonha de o ser
e não ser apenas a outra coisa essa coisa que sou
na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me
absolutamente indefeso diante dos dias.
Que ninguém conheça este meu nome,
este meu verdadeiro nome, depois, talvez
encoberto noutro nome, embora no mesmo nome
este nome de terra, de dor de paredes,
este nome doméstico.
Afinal fui isto, nada mais do que isto,
as outras coisas que fiz,
fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda, porque ao nascer
me deram outro nome, que não merda;
e em princípio o nome de cada coisa
serve para distinguir uma coisa das outras coisas.
Estás aqui comigo e tenho pena
acredita de ser só isto: pena até mesmo de dizer
que sou só isto, como se fosse também outra coisa,
uma coisa para além disto, que não isto.
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos,
mas até nos teus gestos domésticos
tu és mais que os teus gestos domésticos,
tu és em cada gesto, todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo,
o que significam certas palavras como a palavra paz.
Deixa-te estar aqui
perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas,
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui,
perdoa eu revelar que há muito pagas
tão alto preço por estar aqui...
Prossegue nos gestos não pares,
procura permanecer sempre presente,
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui..."
(Ruy Belo)

Nenhum comentário: