sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

MOMENTO

"Encostei-me para trás na cadeira de convés
e fechei os olhos, e o meu destino
apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
e houve no meio um ruído do salão de fumo,
onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado na sensação das ondas!
Ah, embalado na idéia tão confortável
de hoje ainda não ser amanhã, de pelo menos
neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
de não ter personalidade propriamente,
mas sentir-me ali, em cima da cadeira como um livro
que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado num torpor da imaginação,
sem dúvida um pouco sono, irrequieto tão sossegadamente,
tão análogo de repente à criança que fui outrora
quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio por esse momento
sem importância nenhuma na minha vida.
Ah, todo eu anseio por esse momento,
como por outros análogos
—Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência
sem inteligência para o compreender.
E havia luar e mar e a solidão..."
(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)

Nenhum comentário: