sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

NA PLACIDEZ DOS LÁBIOS...

"Insensivelmente os lábios foram-se separando um pouco.
Um dente.
Subtil iluminado de pacificação serenidade alegria de ser
-Se te demorasses um pouco.
E seres aí a vida rodeada de verdade por todos os lados.
Um dente visível.
Mas os lábios separaram-se um mais
e são agora um sorriso claro solar.
E instintivamente deixei que se demorasse aí
até eu poder reconhecer-lhe o esplendor.
É um riso, não vou cometer a imprudência de o perder.
Está na linha do céu e do mar, não vou.
A juventude sem uma força excessiva de o ser.
A confiança -não vou.
O futuro dos séculos a quererem vir.
A segurança contra o medo a vileza a degradação.
A morte.
Nem na realidade há nele futuro algum.
Porque todos os séculos do futuro e do passado
se conglomeram ali no instantâneo presente.
O riso.
Sem olhos nem face. Nem cabelos.
Porque toda a sua ausência está lá.
São olhos iluminados de uma festa terrível,
cabelos de ar.
Fixar-te para sempre, riso da minha pacificação.
Mas pouco a pouco houve primeiro um estremecimento
aos cantos da boca.
Pouco a pouco um encrespado na placidez dos lábios
repousados um no outro e depois a boca alargada,
vejo-a alargar-se por dentro do meu pavor.
E os dentes já visíveis onde o ódio começa,
a boca toda aberta, aberta.
Rasgada, escancarada até ao limite do seu possível.
Os dentes, a língua.
E de súbito, entalado na garganta,
de súbito um grito horríssono, ouço-o.
Tapo os ouvidos, ouço-o.
Horror, ódio, desespero.
Vem das cavernas do Mundo.
Das trevas de todas as noites.
Rebenta-me os ouvidos, o crânio.
Urro de massacre, a terra treme.
Olho a boca selvagem, os dentes carnívoros.
A língua.
Aguardo que o urro se acabe.
E com efeito, subitamente cessou.
Mas a imagem imobilizou-se no grito enorme que já não ouve.
É o horror inaudível, mas presente assim na imagem fixa.
Sem o estridor que a estremecesse.
Mais plausível no imaginário de o ouvir..."
(Vergílio Ferreira)

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