domingo, 24 de janeiro de 2010

TUDO ME DÓI...

"Há dias em que tudo me dói.
Doem-me as mãos que desconheço
esfomeadas de dias, dói-me o olhar,
que se fecha diante da noite,
dói-me tudo, sem fim.
Doem-me os homens que matam
em nome de nada,
doem-me a guerra e a hipocrisia
dói-me o mundo, por dentro de mim,
doem-me as ruas desertas das cidades
aos fins-de-semana
e doem-me os rostos de quem me olha,
como se nada houvesse para te dar.
Dói-me até a própria dor.
E também me doem a ignorância e a soberba,
doem-me as crianças que caminham descalças,
e dói-me a sua alegria de não haver alegria,
doem-me a esperança
e o otimismo generalizado de quem anda cego,
dói-me a indiferença de quem pode,
dói-me tudo, até à agonia.
E também me dói a música,
doem-me os livros que nunca lerei
e doem-me os que amei
e dói-me de coração colado aos lábios,
e dói-me a cegueira do homem,
à procura de uma rosa
na penumbra do olhar.
E doem-me os labirintos onde nos perdemos,
os sonhos e as vielas,
onde perdemos amigos,
e doem-me esses amigos que já morreram
e que nos olham, do alto da sua claridade azul.
E dói-me tudo, até quase deixar de me doer,
dói-me tanto, até já nada fazer sentido.
E também me dói o vento
e as árvores carregadas de frutos,
doem-me as searas maduras de verão
onde o sol brinca com a memória,
entre espasmos de luz dourada,
doem-me a fraternidade que não existe,
dói-me o amor e dói-me a vida
cintilando na brevidade de cada flor,
doem-me as papoilas, os prados
onde o olhar se perde à procura de um lugar,
que vem lembrar-me o que não me doía.
E dói-me tudo, em certos dias,
que de tanto doer não parecem dias..."
(Maria João Cantinho)

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