sexta-feira, 9 de outubro de 2009

NÃO OFEREÇO PERIGO...

"Não, não ofereço perigo algum:
sou quieta como folha de outono
esquecida entre as páginas de um livro,
definida e clara como o jarro
com a bacia de ágata no canto do quarto.
Se tomada com cuidado,
verto água límpida sobre as mãos
para que se possa refrescar o rosto,
mas se tocada por dedos bruscos
num segundo me estilhaço em cacos,
me esfarelo em poeira dourada.
Tenho pensado se não guardarei
indisfarçáveis remendos das muitas quedas,
dos muitos toques,
embora sempre os tenha evitado
aprendi que minhas delicadezas
nem sempre são suficientes
para despertar a suavidade alheia,
e mesmo assim insisto
- meus gestos e palavras são magrinhos como eu,
e tão morenos que, esboçados à sombra,
mal se destacam do escuro,
quase imperceptível me movo,
meus passos são inaudíveis
feito pisasse sempre sobre tapetes,
impressentida, mãos tão leves
que uma carícia minha, se porventura a fizesse,
seria mais branda que a brisa da tardezinha.
Mal posso conter um susto investigando o porte
de cada homem que se aproxima,
em cada esquina que dobro,
em cada ônibus que tomo para ir e vir,
sinto que busco prometido
e me detesto por essa inquietação febril,
pelo amor que desconheço e mal consigo supor,
tão parca é minha vida de memórias ou medidas.
É então que mergulho em banhos gelados no meio da noite
para apaziguar a carne incompreensível,
afogada entre lençóis,
Sobrevivo a cada manhã quando,
cruzando as portas e corredores
que me conduzem às ruas intermináveis,
imagino sempre que sou invisível
para cada um dos que passam.
Ninguém suspeita de meu segredo,
caminho severa pelas calçadas,
olhos baixos para que minha sede não transpareça:
Sou tão morena e magrinha
que ninguém me adivinha assim como tenho andado
- castamente cinzelada no topo deste morro
onde os ventos não cessam jamais de uivar,
tendo entre as mãos,
como quem segura lírios maduros dos campos,
uma espera tão reluzente que já é certeza...."
(Caio Fernando Abreu)

Nenhum comentário: