quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

PERFORMANCE

"Decidi, então, entrar no jogo,
sem perceber que nele já estava.
Meio reserva, assim, meio de lado.
Mal sabia o que significava
e como me sentiria.
Você também desconhecia
as possibilidades aqui, junto a mim.
Instalamo-nos numa espécie
de aventura proibida.
Você nunca saberia a maneira exata
com que minhas mãos seguram
o que se passa entre nós.
Nem eu com as suas.
Isso me causa uma certa vertigem.
Nada sério.
Apenas estimula os sentidos,
evita que entorpeçam e caiam.
É quando o pensamento cai
que o nosso corpo também cai.
Eu voltava para casa ao entardecer,
vinha do trabalho,
pensei em como minha sanidade
depende das minhas mãos
e em como estas dependem
de uma vontade que não encontro em mim,
mas em você, em todo o seu corpo,
cada músculo, cada osso,
cada poro, cada pêlo, cada gesto
e movimento que faz.
Essa foi a vertigem.
Foi o que senti na hora
e me levou diretamente ao chão.
Nada sério. É só a minha vida.
Nada sério. E a sua, também.
É bom saber.
Mas se ocorrer
disso ser descoberto por alguém
no momento exato em que pensamos?
Nessas horas,
teremos que aprender por nós mesmos
a ser outra coisa, outro alguém,
ao menos temporaria-mente.
E não cair. Aprender a fingir.
Diários, poemas, ensaios, emails,
receitas de cozinha, cartas-bomba
ou cartas de suicida,
contratos, livros-caixa.
Exagerado demais?
Quando se escreve coisas assim
não se sabe quem se é,
para quem se diz, nem o que se diz.
E o motivo já se perdeu.
Talvez nunca tenha existido realmente.
O próprio formato de dizer
demanda isso hoje em dia.
Pois é.
Já falei da mania dos dedos?
Enquanto ouço falarem
ou enquanto o pensamento voa?
É assim. Um sapateado,
metade visível em minhas mãos,
na ponta dos dedos, metade invisível,
pois eles bailam sobre algo
que lhes escapa,
mas que está ali inteiro: você.
Secretariam um outro e a mim mesmo.
É tudo o que fazem. Acho que sempre.
O mundo se concentra todo nisso.
E viver assim é um ato em falso.
Gesto aéreo.
Nessas horas corro de novo o risco de cair.
Uma premonição.
E começo a andar tão firme,
tão certo, tão decidido.
Sou então um barco de certezas
flutuando na incerteza que você;
meu corpo esse bloco;
um vazio espesso cortando;
o espaço-muro à frente,
direção mar e a favor do que não sei.
Mas, ai, toda certeza é terrível.
E se limita ao tempo que passa
irremediavelmente.
A morte é um fato.
Assim como aqui sou em falso.
Elaborando uma memória que nos pertence
–a mim e a você.
Nada fica desse em falso
além dos malabarismos.
Penso que tudo pode se esvair,
pelo ralo, desaparecer mesmo.
Por isso, se eu disser algo
que se assemelhe a um código secreto,
a uma cifra hermética,
não será por desejo de obscuridade.
Mas por simplesmente pensar
em guardar uma margem de segurança
que eu próprio desconheço.
E é bom que assim seja.
Para seu bem. Para nosso bem.
Tento assim resumir o sentimento
de emergir no cristal líquido
onde a palavra nada entre nós dois..."
(Sandro Ornellas)

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