sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

NA NOITE TERRÍVEL

"Na noite terrível,
substância natural
De todas as noites,
Na noite de insônia,
substância natural
De todas as minhas noites.
Relembro,
Velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz
E o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo
Como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado
-Esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres
Pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser
Que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados
pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui,
O que eu não fiz,
o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo
Que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo
Que deveria ter sido
Isso é que é morto
Para além de todos os Deuses,
Isso e foi afinal o melhor de mim
É que nem os deuses fazem viver...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda
Em vez de para a direita;
Se em certo momento tivesse dito sim
Em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa tivesse dito as frases
que só agora, no meio-sono, elaboro...
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje,
E talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente
Levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado
Irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar,
E só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim,
E só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer
Nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi,
Nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras
Não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo
Eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei levar para outro mundo
O que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver,
É que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre,
Para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo,
E o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar,
Com a esperança que não tenho,
É invisível p'ra mim..."
(Fernando Pessoa)

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