sábado, 1 de maio de 2010

A ÚLTIMA PARAGEM

"Preciso que estejas aqui e me salves dos fantasmas
que atacam em bando aos primeiros alvores do dia.
Espanta-os. Redime-me de alguma forma,
como se me absolvesses em confissão,
ou como um pai que perdoasse
os desmandos do filho pródigo.
Eu não sou só eu: sou também isto,
este excesso de bagagem que dá multa,
os gritos que não ouves quando falo muito,
quando falo demais, com o intuito nervoso
de espantar o bando de corvos que me cerca
e me enegrece em voos rasantes de agoiro.
Tenho sempre medo a esta hora da madrugada:
sinto-me fraca, na vazante, no soçobro, um fio de gente,
um engano cósmico qualquer.
Os primeiros autocarros aceleram pela rua ainda vazia,
esforçando os motores barulhentos,
a televisão repete séries e concursos requentados
e há uma preocupação indefinida que paira no ar,
como quando tememos que um filho adoeça
por ouvirmo-lo tossir no quarto.
Já a culpa, essa, é uma luz acesa no meio da sala,
que me incandesce e me cega.
Há coisas que não te contei
só porque não as quiseste saber, mas isto,
ao menos, regista para memória futura:
quando não estamos juntos, forças adversas aproveitam
o eu estar sozinha para me acoitarem à covardia,
no silêncio do dia que nasce, indiferente.
Vêm lestas, como os autocarros na rua,
e eu sou a sua última paragem..."
(Sofia Vieira)

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