sábado, 1 de maio de 2010

OS CIÚMES QUE TENHO

"Tenho ciúmes, nem imaginas os ciúmes que tenho,
queria que fossem só meus, esses fiapos de atenção
que distribuis pelos outros em rateio ao longo do dia.
Tenho ciúmes da mulher com que te cruzas na rua pela manhã,
que passa apressada e sombria sem te atentar no perfume.
Tenho ciúmes da vizinha que partilha contigo
o metro quadrado do elevador, respirando ambos o mesmo ar;
da tua secretária, que chega por trás
e se debruça perigosamente sobre essa nuca que é minha,
para te mostrar um documento qualquer;
e da empregada do restaurante, que recebe o teu pedido,
sugerindo-te as especialidades do dia,
e a quem sorris alheio enquanto encomendas
o melhor vinho da lista para impressionares
quem se senta ao teu lado.
Tenho ciúmes de quem se senta ao teu lado
e usufrui de toda a tua atenção;
e da loura que vai no trânsito,
a quem dás prioridade e deixas passar à frente
com um aceno de cabeça e um olhar de raspão,
desfocado mas atrevido.
Tenho ciúmes da rapariga da bomba onde enches o depósito,
a quem pedes um maço de cigarros e por quem aguardas
enquanto conta os trocos com dificuldade;
da hospedeira que te serve o bloody mary
mal o avião levanta vôo,
e das que olham para ti na rua
e te prescrutam o dedo anelar,
tentando perceber se és casado,
se estás disponível ou se ambas as coisas.
Tenho ciúmes das que têm coragem para te abordar
de rompante num bar e te beijam na boca
como se fosses delas -e por momentos até és-,
te arrastam para um quarto,
te viram do avesso e te deixam;
das vendedeiras da praça que te tratam por menino
com impudência desabrida;
e da doutora da farmácia onde avias as receitas,
do tempo que demoras ao balcão, fazendo conversa,
conferindo dosagens, pedindo recibos.
Tenho ciúmes da velhota da pastelaria
que te conhece há anos e que te tremelica
uns bons dias com familiaridade deslocada;
e da advogada canina com quem te reunes amiúde,
convencido de que a lei te vai resolver
toda essa vida sem mim.
Tenho ciúmes da tua mulher,
da indiferença que lhe votas quando chegas a casa,
das conversas geladas sobre domesticidades
-qualquer coisa me servia agora-;
e tenho ciúmes da tua empregada,
que espaneja e arruma os restos de ti
que sobram pela casa quando não estás,
recolhendo em sacos de aspirador os teus cheiros
e essa tristeza que deixas depositados nos cantos.
Tenho ciúmes, nem imaginas os ciúmes que tenho."
(Sofia Vieira)

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