segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

NÃO RESISTO À TENTAÇÃO...

"Agora tenho um horário que me rouba horas à poesia.
É simples - de tão escandaloso que é:
não posso dar-me ao luxo de pensar em ti a cada instante
e –está explicado!–
já nem tento oferecer os pulsos para que os beijes.
Agora perco-me em saudações cordiais e sorrisos de bons dias.
Sou toda leveza, acreditas?
Em mim já não há espaço para a alegre melancolia dos teus olhos.
Deixa-me que te minta.
À hora de almoço quase me vou abaixo na determinação
que -diariamente e num esforço notável-
impinjo ao meu peito para te esquecer.
Quase. Junto com o arroz e a hortaliça
–cuidadosamente expostos num tupperware amarelo–
trago também aquele livro às escondidas.
Repara: a cor é a mesma
e eu sempre gostei de cores garridas para espantar o desgosto.
Pensei em abri-lo -como sempre- depois do ritual do café.
Mas digo que não e resisto à tentação.
Hoje saí cedo com um vestido de folhos até aos pés
e decidi chamar o calor.
Pintei as unhas para me entreter.
Aqui ninguém te conhece e não há tempo para apresentações
nem mais vagar para lágrimas.
Não deixo que me provoques.
Sobrevivo impune por amor à literatura.
Talvez pelo pouco amor que lhe tenho não me deixo seduzir.
Só por isso. E quando chego a casa
estou demasiado cansada para que me despertes.
Ainda bem.
Já não me sento à varanda a ver-te chegar.
Abandonei as bebedeiras e todos os vícios.
Vivo agora num coração saudável:
especificamente treinado para a rotina.
Adormeço ao som da mesma música
mas já não peço que me sussurres a carta da paixão ao ouvido.
Eu também só sei ler para dentro, amor.
A rua está vazia e não há mais nada que nos peça claridade.
Amanhã tenho uma encomenda
sem réstia de imaginação para preparar.
Encontrei maneira de não ter tanto medo do futuro:
porque já não te espero às minhas mãos.
Num impulso. Morreste-me como um nó atravessado na garganta
e eu –asfixiada– suicidei-me a seguir.
Para que saibas: foi assim que deixei de escrever."
(Margaret Atwood)

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