segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

QUANDO PARTIRES...

"Quando partires, às cegas,
pelas veias da cidade,
encontrarás quem de mim diga que estou vivo,
ou o contrário.
E quando o fizeres, ver-me-ás, sozinho,
de rosto estampado nos quadros da parede,
com as pálpebras cerradas sobre o meu peito.
Escreverei cartas como se te desenhasse a cada palavra,
o vento voará por mim sem que o impeça,
e tocar-me-ei pela noite dentro,
imaginando que estás por aqui.
De hoje em diante, cerro a porta do quarto
para que não entres
-tenho a certeza de que te convidei,
um dia, mas já não estou certo.
Apagarei cigarros em frenesi,
como páginas soltas de memória
ou como lumes brandos nas copas das árvores -
imaginei tudo isto enquanto dormias,
nos teus sonhos em que o corpo era uma massa volúvel,
insana e vermelha.
Hoje já é manhã
-a esta hora já acorda quem por mim não passa.
Não durmo para que, ao chegar aonde tu estás,
possa ser uma surpresa ou desilusão-
como uma marca no peito,
como um soluço de água quando a noite cai.
Para isso estou hoje aqui,
para que me entregues e para que morra.
Pela penumbra, espalhei fotografias
e luas luminescentes que olho
e que gasto com a minha saliva,
como o selo desta carta.
Na minha pele ainda jaz o teu bafo quente
de quando acordavas e de quando eu te via
-às escuras, nua, pelo quarto herege e quente.
De dentro dos lençóis emanava a voz que,
aos nossos corpos, se assemelhava a uma religião,
a uma quase-entrega-imaterial.
E, por não te ter, me retiro para países
onde o sol se ponha e onde os olhos não me ardam.
Para que me possa solver no meio das multidões,
onde alguém fala, onde ninguém me conhece
-como uma palavra.
E em línguas estranhas me defino
no livro que escreves, dia após dia,
onde te recordas, onde deixas latente
quem eras ou quem serias se, por aqui,
as giestas fossem calmas e se o teu corpo se enlevasse
-à altura do meu peito surgem marcas,
os teus dedos estão queimados e a pele nada mais é
que um perfume mastigado onde não estás mais..."
(Sérgio Xarepe)

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