segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

VEM TER COMIGO...

"Descreve-me.
Conta-me uma história sem que grites uma mentira.
Sem que dês uma facada no mundo; em mim.
Cá dentro –onde as palavras não chegam–
quantas horas de solidão? Uma perdição desconhecida
–e é como quem diz febre excessiva –
que ofereça de beber às lágrimas.
Ninguém pode saber que o dia começa tarde,
que a dor sufocou ao canto da cama,
que o amor aconteceu e já ninguém sabe se volta.
É assim que se prova a imprudência?
As cores dos objectos todas fora do lugar;
uma ligeira corrente de ar assustada pelos malabarismos
de um corpo que finalmente se entrega ao cansaço
–o amor permanece?– e a lua reflectida no mar.
Às vezes isto. Bastava dizeres-te aqui.
Eu podia fingir olhar para o teto,
imaginar-me dentro das ausências do mundo,
e esquecer o impossível.
Entre o teu corpo e o meu uma vaga –ou precipício?-
onde não nos deixamos cair por capricho.
Adormecemos.
Eu queria plantar rios, regar todas as flores,
transpirar mapas e esbater fronteiras inúteis
até que se rasgassem de raiva.
Se no lugar do coração tivessem crescido
mãos dadas os pássaros não mais se esconderiam.
Venham ter comigo.
Esfrego os olhos e escrevo em colapso:
sou uma folha que se fechou antes mesmo de existir.
Não há tempo para vender a alma.
Carrego memórias de um lado para o outro
e sorrio a quem passa.
Começa tu de novo, por favor:
conta-me uma história de gestos vermelhos
que queimam como lava e tanto salvam como maldizem.
Estende-me esse olhar –e é como quem diz– Ama-me.
Vem comigo.
Há palavras que merecem silêncio.
Mas quem é capaz de percebê-las
sem antes precisar sangrá-las na sua insensatez?"
(Boris Vian)

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